Ezra Geld: “A militância contra o consumo desenfreado é tão ruim quanto o consumo desenfreado”

“Consumo, logo existo”. Ou seria: “Existo, por isso consumo”? Para encerrar a série Tempos Líquidos, Ezra Geld, CEO da agência J. Walter Thompson Brasil, conversa com exclusividade com a FAUSTO sobre mais um tema estudado por Zygmunt Bauman. Formado em História Econômica e Social pelas universidades de Cornell, nos Estados Unidos, e Bristol, na Inglaterra, Geld olha o mundo, neste bate-papo, como publicitário. O consumo desenfreado diz sobre nossas angústias ou a roda não pode parar de girar? O que é luxo? O que aspiro? Quem sou eu para uma marca e para mim mesmo? Confira!

Foto: Peter Lindbergh.

FAUSTO – Consumo, logo existo?
Ezra Geld:
É o inverso. Qualquer pessoa que existe, consome. Muitas vezes enxergamos o consumo como algo negativo. De fato, existe o consumo exagerado. Agora, se consumimos e por isso existimos, não é de hoje, mas desde que o homem é homem. As transações que aconteciam na Idade da Pedra não são as mesmas de hoje, claro, mas havia transações, até para que houvesse sobrevivência.

O “direito de consumir” tem como finalidade a felicidade?
Não creio… E questiono isso de “direito de consumir”. Se você me perguntar se é verdade que muitas pessoas não podem consumir, é claro que é verdade. Como resolver isso? Não sei. Agora, partindo do pressuposto de que o direito de consumir exista – só para simplificar a conversa – não creio que felicidade seja a finalidade. Porque aí entraríamos em outro “direito”, que é o de ser feliz.

A felicidade é um direito?
Não, não acho. É uma capacidade. Para mim, nem o consumo é um direito, nem a felicidade é um direito. Mas há, de fato, uma associação entre felicidade e consumo, o que também questiono.

Por quê?
Voltamos à primeira pergunta. O consumo está exagerado porque o capitalismo pede isso, mas o consumo exagerado também é sintoma dessa busca pela felicidade, que a meu ver é vazia. Como se a aquisição de coisas pudesse resultar em felicidade, e não é assim. Ajuda, mas não garante. A felicidade está mais para a capacidade de enxergar o que se tem – adquirido, que seja –, mas, principalmente, pelo que lhe é natural. É um estado de espírito, uma condição do ser.

Então, primeiro é preciso rever o conceito de felicidade para depois rever o de consumo, dentro dessa ideia de consumo como caminho para a felicidade…
Exatamente.

Pessoas tornaram-se mercadorias?
Infelizmente, e de certa forma, sim. Nesta questão, sou mais pessimista, cético e chato. Na buscar da felicidade pela aquisição de coisas, as pessoas também se permitem ser adquiridas. E isso quer dizer a mercadificação do indivíduo. E ele também se permite ser trocado por qualquer outra coisa. Mas, de verdade, creio que o problema nem está aí.

Está onde?
É muito mais profundo e mais sério. As pessoas não estão mais conseguindo ter relações profundas o suficiente para ter significados; significados que vão além da transação. De alguma forma, nos tornamos commodities.

O “Lifestyle” – determinado pelas revistas, pela publicidade, pelas tendências comportamentais em geral – um dia sairá de moda?
Creio que não. O ser humano é essencialmente social e hoje predominantemente urbano. Ele precisa de coisas que o conectem com os demais. O “lifestyle”, como você o descreve, e o marketing de forma geral, nada mais é do que atalhos para significados.

Como assim?
Atalhos para facilitar que as pessoas se sintam parte de uma tribo. O que eu acho que está acontecendo hoje – que para mim é o copo meio cheio das redes sociais e aplicativos de relacionamentos – é que você pode flertar e brincar ao mesmo tempo com vários tipos de lifestyle. Você não precisa mais ser a vida inteira o rapaz Ralph Lauren ou o rebelde Diesel. Você pode fazer uma mistura muito mais plural. E isso, sobretudo, se aplica aos jovens. Então, acho que não sai de moda porque as pessoas sempre vão querer pertencer a uma tribo. O que vai acontecer – ou já está acontecendo – é as pessoas pertencerem a várias tribos e tribos ainda mais nichadas.

E isso se deve a quê?
O mundo da tecnologia está permitindo que o indivíduo participe de tribos cada vez mais específicas. Posto isso, mesmo que eu esteja bem em cada uma das minhas tribozinhas, ainda vou querer pertencer a uma “tribozona”. As duas coisas parecem se contradizer, mas elas dialogam.

Hoje, o que é luxo?
Na medida em que, sim, hoje é possível comprar quase tudo – e apesar de ter caído em desuso falar de target e faixa etária – a compreensão de luxo depende da faixa etária, do momento da vida. Para um millennium, é ter escolhas; para uma pessoa mais estabelecida na carreira, é o tempo.

E para você?
Eu. [Dá risada] Eu poder me voltar para mim mesmo. É muita coisa para fazer, muita informação para assimilar. Fomos assaltados de nós mesmos. E creio que estamos esquecendo como nos voltar para nós mesmos.

Hoje, quem não consome desenfreadamente pelo ideal de não consumir além do que precisa está formando um novo mercado? Por exemplo, o de bens de significado. Está sendo difícil alcançar essas pessoas?
Há quem brigue contra o consumo, mas não há como evitá-lo. Sou publicitário, mas não defino as pessoas como consumidoras. Pessoas são pessoas, e em determinados momentos elas vão comprar coisas, ponto. Elas podem não comprar aqui, mas comprarão lá. E olha só que curioso, voltamos à pergunta anterior. A tentativa de evitar o consumo é uma forma de buscar a própria tribo. A militância contra o consumo desenfreado é tão ruim quanto o consumo desenfreado. Sou contra quem quer fugir do consumo, mas sou a favor de quem quer fugir do acúmulo.

Como sou do time dos pessimistas, para mim não tem saída, é entregar para Deus…
[Dá risadas] Sim.

O “aspiracional” ainda funciona?
Sempre vai existir como ferramenta. O que está mudando é o que as pessoas aspiram ser. Classificar as pessoas como A, B, C ou D tornou-se quase irrelevante. Na realidade, as classes C e D não querem ser classe A. Elas têm referências no mundo cultural delas que são muito ricas. Isso mudou muito!

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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