Francisco Razzo: “Aborto é um problema tanto de mulher quanto de homem”

Aborto: você é a favor ou contra? Crê ser uma decisão que cabe apenas à mulher ou o homem tem parte tanto quanto? Interromper uma gravidez por motivos financeiros, emocionais ou porque os métodos contraceptivos falharam são motivos válidos ou há uma questão para além da ordem prática da vida que é a dignidade da pessoa: embrião, criança ou adulto. Francisco Razzo, autor de A Imaginação Totalitária, em seu novo livro Contra o aborto aborda o tema do ponto de vista da filosofia e conversa com a FAUSTO com exclusividade também sobre a verdade inevitável: é principalmente na ordem prática da vida que o nascimento de uma criança afeta irreversivelmente. Segue uma reflexão profunda e nada fácil.

Francisco Razzo.

FAUSTO – Por que uma mulher deve ler um livro sobre aborto escrito por um homem sobre uma questão que acontece dentro do corpo dela?
Francisco Razzo:
Porque um livro sobre aborto pode ser — e  valorizo essa possibilidade a ponto de defender que não só pode como deve — fundamentado em uma linha de argumentação independentemente do gênero, da cor, da condição econômica e social, da religião, do time de futebol e do tamanho do pé de quem escreve. Uma coisa é o valor em si de um argumento, outra, completamente diferente, é a experiência ou a condição pessoal de quem argumenta. Aceitar que “problema de mulher” deve ser pensando e resolvido apenas por mulheres é incorrer em relativismo. Parafraseando Protágoras, o sofista grego defensor do relativismo: “a mulher é a medida de todas as coisas”?  Não, não é; muito menos o homem, pois há verdades para além de nossas experiências pessoais. E é disso o que se trata um livro de filosofia, mesmo quando se trata do aborto – um tema da ética aplicada.

Por exemplo?
A validade da sentença “mulheres devem ler apenas livros sobre aborto escritos por outras mulheres” não é satisfeita por ter sido expressa por mulher ou homem. A sentença pretende ser objetivamente verdadeira, e não verdadeira por ter sido formulada por mulher, certo?

Certo…
Então, há uma contradição.

E qual é?
Ora, a de que a sentença é válida por si mesma e não por ter sido expressa por uma mulher. Contradições lógicas, quando atuam no nível social, só fazem sentido mediante o exercício da força, ou seja, se a sentença acima não é objetivamente verdadeira, deverá ser imposta pela vontade do mais forte. Quando a vontade precede a verdade, estamos no âmbito da tirania. Nesse caso, mulheres — ou homens — que defendem a “validade social” de uma sentença objetivamente falsa demonstram o desejo tirânico de substituir uma cultura machista patriarcal por uma feminista matriarcal. Se não há verdades objetivas, tudo está sujeito ao perpétuo ciclo da violência. Dizer que o aborto é um tema que só pode ser tratado por mulher é um bom exemplo de autoritarismo.

Ou seja, o debate deve sair do domínio feminista?
Vejamos. Do ponto de vista lógico, supor que a fonte de um argumento afeta sua validade consiste em falácia genética. Argumentos devem valer por si mesmos. A veracidade de premissas e a força inferencial da conclusão de um argumento são independentes da força — ou fraqueza — social de quem argumenta. É um absurdo a sentença “provém de mulheres, logo é verdadeiro”, assim como é igualmente absurdo dizer “provém de homens, logo é falso” — ou vice-versa.

É um tema multidisciplinar…
O debate do aborto, que antes de tudo diz respeito ao status pessoal, à relevância moral do nascituro e à autonomia da mulher sobre o próprio corpo, é um tema que envolve uma série de disciplinas: antropologia filosófica, filosofia moral e filosofia e filosofia do direito — só para ficar no conjunto de disciplinas relacionadas à filosofia, fora as outras áreas de conhecimento. Aqui, é muito importante que as pessoas não confundam “drama pessoal” com “justificativa filosófica sobre uma decisão moral”. No tema do aborto, tal como entendo e defendo, estamos mais no âmbito da justificação de um juízo que valida uma ação do que no âmbito da própria ação. Por isso, e só por isso, ser assunto “de mulher” é irrelevante. Reduzir ao domínio feminista não passa de ideologia autoritária.

Difícil tratar a questão apenas como “justificativa filosófica sobre uma decisão moral” uma vez que é de fato um drama, que acontece, inclusive, com quem não tem acesso ao mais fácil conceito de Filosofia, que, grosso modo, daria à mulher mais condições de pensar sobre o assunto… É um drama.
Reforçarei com um exemplo. Imagine que você pede um conselho para um amigo sobre tomar uma decisão moral. Sei lá, ser honesta com seu parceiro num relacionamento amoroso. Teu amigo fornece uma regra para você e diz: “em casos como esses, você nunca deve mentir”. Você poderia simplesmente aceitar a regra de bom grado e tomar a decisão de só falar a verdade. Entretanto, há uma alternativa. Você pode exigir que teu amigo justifique essa regra. Se você optar pela justificativa dessa regra, você quer argumentos que a legitimem. A ideia aqui deve ser formulada assim: “Por que é verdade que em casos como esses, não se deve mentir?” e não apenas “em casos como esses, não se deve mentir”. A discussão, portanto, é sobre a fundamentação da verdade de uma regra e não sobre o agir acriticamente porque alguém te sugeriu uma possibilidade de ação.

Aplicando ao aborto…
Para se ter uma ideia, dois dos melhores livros a favor do aborto foram escritos por homens. David Boonin, que escreveu A Defense of Abortion, e Jeff McMahan, autor do A ética do ato de matar. São obras de extremo rigor filosófico e, embora eu discorde dos autores, as conclusões as quais eles chegaram não têm nada a ver com o fato de serem homens, mas com o fato de serem coerentes, consistentes e intelectualmente honestos. Por outro lado, uma das mais importantes filósofas contrárias ao aborto, na minha opinião, é uma mulher: Elizabeth Anscombe, que morreu em 2001. Anscombe era uma católica devota e escreveu muito sobre ética e sexualidade. Era contrária ao aborto, à contracepção e defendia a castidade como virtude.

O aborto então não é um problema exclusivo da mulher?
Claro que não. Primeiro pelas razões que já apresentei. Depois, é falso considerar o aborto como problema exclusivo de mulher em virtude de a gestação ocorrer no corpo de mulheres. Isso não é razão suficiente. O que está em jogo com esse tipo de confusão é a mais pura tentativa de atribuir um poder sem precedentes a mulheres. Um poder que se constitui em dois níveis de relação: mãe/filho e mulher/homem.

Explique com mais detalhes…
O primeiro diz respeito à mulher e ao embrião. Significa dar direito do mais forte, a mãe, matar a pessoa mais fraca e indefesa, o filho. Não há linguagem que minimize o fato de que o direito do aborto é o direito da mãe — a mais forte nessa relação de poder — matar o filho; a não ser, claro, que se desconsidere o embrião como pessoa e filho, mas isso conduziria o tema para o debate filosófico acerca do status antropológico e moral do embrião. Se for esse o caso, não faz sentido o debate ser tratado como autonomia da mulher sobre o próprio corpo. E não é claro dizer que se possa fazer o que se quer com o próprio corpo. Pense na automutilação, para usar como contraexemplo.

O que seria o status antropológico e moral do embrião?
É a discussão sobre a realidade do embrião. É o que responderá se ele já deve ser considerado uma pessoa ou uma mera entidade biológica; alguém ou algo. Defendo uma visão chamada de personalista.

Qual é a visão personalista?
O embrião é uma pessoa não em virtude de suas funções neurobiológicas, mas em virtude de sua própria natureza racional. Portanto, suas funções neurobiológicas só se desenvolvem, na verdade, por causa de sua natureza racional. Se ele já é um ser racional, tem relevância moral e precisa ser tratado com respeito — e isso é independente de suas condições biológicas, psicológicas, sociais, econômicas…

Por que o homem deve ser considerado?
Há a falsa ideia de que a concepção de uma nova pessoa depende exclusivamente da vontade da mulher. Não depende, a realidade diz o contrário. Tratar aborto como um problema exclusivo de mulheres é dissolver o vínculo da possível comunidade familiar e retirar qualquer ônus de responsabilidade dos homens, que também devem ser vistos como “sócios” na formação de uma nova vida. Na concepção e na criação, homens têm tantas responsabilidades quanto mulheres. Assim como um filho tem mãe, também tem pai — e não importa a qualidade da relação entre eles.

Parece, e peço que esclareça, que considera o homem nessa questão como um homem que está interessado em um relacionamento com a mulher, que se relaciona com essa mulher. Não estamos falando de sexo casual, certo?
Não necessariamente. Estou apenas considerando que qualquer gestação de uma nova vida dependente de homem e mulher. Não estou pensando na qualidade do relacionamento.

Você é contra o sexo casual?
Não é o tipo de coisa que se é contra ou a favor. Acontece, e vai depender do quanto se está disponível a isso. E essa disposição para o sexo casual não pode ser ingênua. Ou seja, é preciso estar ciente das consequências da atividade sexual. Há riscos, e um deles é o de engravidar. É um cálculo de consequências que não se pode desprezar.

Se a relação não é forte o suficiente para formar uma família, o casal deve tentar assim mesmo e comprometer a saúde emocional de uma criança que vai crescer em um ambiente sem amor?
“Saúde emocional de uma criança” é uma expressão muito difusa para servir de justificativa para eliminar um filho ainda no ventre. Gravidez é resultado de escolhas — boas ou ruins, planejadas ou não planejadas. Um filho não é um produto que você compra em uma loja e devolve — caso não se sinta satisfeita com a qualidade do produto. Uma pessoa não é mais ou menos digna por ser devidamente reconhecida por terceiros. A dignidade está em sua natureza, independente se a pessoa será amada ou odiada, querida ou desprezada.

Não tenho nenhuma dúvida de que fui filha indesejada. Há mulheres que não nasceram para ser mães…
Você tem dignidade independente do amor ou ódio de terceiros. Você não é mais pessoa porque teu pai te ama ou te rejeita. A propósito, justamente por ser digna em sua realidade pessoal, uma mulher deve exigir, a contragosto de todos os machistas, o reconhecimento de sua dignidade.

E se a camisinha estourar?
É uma possibilidade que precisa ser calculada antes de se aventurar numa relação sexual. Se não tem culhões — e aqui a palavra é bem adequada — para assumir certos riscos, por que se aventurar numa relação sexual? A cegonha se aposentou do imaginário popular faz tempo. Responsabilidade é uma virtude que precisa ser cultivada, não há moralismo nenhum nisso. Responsabilidade implica senso de realidade.

E no caso de estupro?
Moralmente, sou contra o aborto. Considero errado matar inocentes, para qualquer caso. O embrião, em casos de estupro, é um inocente. Portanto, é errado matá-lo. A injustiça da atrocidade do estupro não será reparada por que uma mulher abortou. Na verdade, só aumentará o ciclo de violência. Se você me perguntar se eu acho que uma mulher deve ir presa por ter abortado em caso de estupro, eu responderei: não sei. Não lido com questões penais. Para mim o problema moral já é, por si, o problema.

Parece-me racional demais… Na prática, quando quem foi violentada é uma pessoa que amamos, é possível dizer “não sei”?
Não, não é possível parar no “não sei”. Há um problema com essa pergunta que expressa bem o estado atual da nossa situação social: o direito ser tratado na esfera da experiência psicológica. O pressuposto da pergunta “quando quem foi violentada é uma pessoa que amamos” acaba “psicologizando” (entendido aqui como redução à esfera da experiência pessoal) demais um tema que impõe sua objetividade. Por que isso? Em virtude do fato de que o contrário também não ter validade. Se a pergunta fosse: “quando quem foi violentada é uma pessoa que odiamos, é possível dizer ‘não sei’?” Meus sentimentos de amor ou ódio não podem servir de critérios para eu determinar se uma decisão é justa ou injusta, lícita ou ilícita. Por esta razão, precisamos de tribunais e juízes. Quem experimenta o drama de uma injustiça não pode ser o agente reparador da justiça. E seu sofrimento a medida da justiça. Quando eu digo “não sei” para a pergunta da punição é porque eu não penso como um juiz, meu raciocínio não é jurídico e penal. Punir é uma tarefa das mais difíceis, demanda parâmetros objetivos. E é com esses parâmetros que estou preocupado, pois eles antecedem o raciocínio jurídico.

Se eu engravidar e não quiser ter o filho, e eu não considerar a opinião de quem me engravidou, estou, numa linguagem rasteira, “dando um tiro no meu pé”?
Neste caso, o grito por sua total independência, paradoxalmente, acaba sustentando também sua total submissão. Mulheres não são como “abelhas-rainhas” cuja reprodução é resultado de um processo de fecundação assexuado conhecido como partenogênese. Exceto em casos de estupro, o que “acontece” — e você se refere à gestação de um filho, de uma nova pessoa — dentro do corpo da mulher foi fruto de uma decisão conjunta entre mulher e homem. Por isso minha pergunta sempre será: se para gerar e criar filhos a decisão deve ser mútua, e não uma decisão unilateral da mulher, por que não deve ser mútua a decisão de matá-lo? Logo, aborto é um problema tanto de mulher quanto de homem.

Se esse filho comprometer apenas o meu futuro, o meu dinheiro, a minha carreira, e nada acontecer com o homem, porque a medida é desigual mesmo, ainda assim eu devo considerá-lo? Inclusive correndo o risco de ele prometer “ficar ao meu lado” e depois me deixar criando, educando e arcando com os custos, sozinha?
Por isso defendo o valor de dignidade na realidade da pessoa. Esse valor não pode ser condicionado a uma situação na experiência: falta de dinheiro, carreira… Se o valor das pessoas já não está nas pessoas, então todo valor tem como fonte o que os terceiros pensam da gente. A dignidade da mulher depende daquilo que os homens consideram ou do fato (status) de serem pessoas desde a concepção? Meu livro procura responder exatamente a essa pergunta.

 

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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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