Frank Usarski: “Idolatro a liberdade se não reflito sobre suas implicações”

O que vem antes da intolerância religiosa? O que não aceito em mim, o que não suporto que seja diferente do que há em mim ou o que tira de mim a segurança? Precisamos falar sobre intolerância religiosa, mas precisamos antes entender por quais razões as escolhas do outro não me são indiferentes. Conflitos étnicos, políticos, sexuais. A gama de motivos parece ir muito além de dogmas e visões de mundo. Existe saída? Para Frank Usarski, livre-docente e pós-doutor em Ciência da Religião pela Universidade de Hannover, Alemanha, uma delas é o ensino de religiões no currículo de base das escolas. Coordenador do programa de estudos pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP e autor de O Budismo e as Outras – Encontros e Desencontros entre as Grandes Religiões, Usarski conversa com a Fausto com exclusividade sobre essas questões de caráter tão subjetivo, além dos possíveis limites que deve (ou não) haver no humor e na arte quando o assunto é religião. Confira!

Frank Usarski.
Frank Usarski.

Fausto – Temos, antes de qualquer coisa, um problema semântico na questão da tolerância religiosa? A palavra “tolerância” pressupõe que devo suportar a escolha do outro.
Frank Usarski: Não vejo problema. Tolerância pode ser uma questão consigo mesmo. Uma característica da pós-modernidade é começar a refletir sobre si mesmo. É quando você passa a entender que sua posição é sempre particular. Quando refletimos sobre nós mesmos, diminuímos o risco de nos colocar acima de tudo e passamos a ver as escolhas do outro também como possibilidades legítimas.

Haveria necessidade de tolerância se as escolhas do outro fossem indiferentes para mim? O intolerante não deve então se tornar tolerante, mas superar os próprios preconceitos.
Em ambiente de pluralismo religioso, você tem duas posturas extremas: uma é a negação total do outro, o que coloca você como a única possibilidade, e isso é fundamentalismo; a outra é a radicalização da subjetividade da fé. O que eu preciso, em termos espirituais, só eu posso saber. Vou escolher, diante das opções que existem, o que combina mais comigo. Agora, se isso vale para mim, tem que valer para todo mundo. Nos dois casos, é uma tentativa de diminuir os desafios do pluralismo religioso.

Por que o tema pluralismo religioso é tão complicado?
Porque é um desafio antropológico. O ser humano tem limites para administrar cognitiva e emocionalmente o pluralismo religioso. A pessoa precisa ter certeza de que aquilo que acredita, o norteia de maneira verdadeira. Entre esses dois polos, há várias possibilidades, é claro. E há tendências, de acordo com cada fase na trajetória espiritual de cada pessoa. O recém-convertido, por exemplo, para autoestabelecer a sua escolha – porque é uma escolha, as opções não são mais naturais, pré-definidas, como nas sociedades pré-modernas, quando havia uma grande tradição e todo mundo a seguia, e pelo fato que todo mundo a está seguindo, você se sente seguro. Nesse sentido, o outro é uma confirmação de adequação da própria fé. Por isso as religiões precisam de uma comunidade. Se você fica muito longe da comunidade, você começa a se diluir no pluralismo e as dúvidas começam a surgir. O que é algo natural no ser humano. Agora, se o outro apresenta, com a mesma convicção que você, outra cosmovisão, você começa a se perguntar: “Será que estou no caminho certo?” Isso é completamente plausível. Para que a religião que você escolheu tenha a função de orientar sua vida, você pode se sentir obrigado a negar a religião do outro: “Isso é do diabo!”, “Isso é uma seita!”, “Isso é heresia!”. Ou é uma bobagem, ou projeção, enfim. Dalai Lama diz: “O ser humano nasce com necessidades espirituais diferentes”. Por isso, o pluralismo religioso é natural.

Tenho a impressão, sem base nenhuma, é apenas uma impressão, de que os budistas e os ateus são os que menos inflamam guerra…
Os ateus sim. Mas faço aqui uma diferenciação entre ateus e agnósticos. O ateu é uma pessoa que defende ofensivamente a ideia de que Deus não existe. O agnóstico reconhece a incapacidade do ser humano de ter a certeza da existência de Deus. E o agnóstico tem certeza de que a existência divina não serve para a sua vida, então, a religião é indiferente para ele. O ateu é alguém convicto da não existência de Deus e ele quer acabar com a religião. Ele pode argumentar ofensivamente para convencer o outro de que tudo o que ele acredita é bobagem e faz mal para a humanidade.

Nem todas as recusas são racionais. Isso sim é um problema sério?
Bem pensado. Podemos inverter essa lógica: quanto mais você conhece as religiões, menos preconceituoso você é. E você começa a perceber também que alguns dos motivos de rejeição são oferecidos pela mídia. No Islã, por exemplo, opressão da mulher e guerra santa são distorções seletivas de uma religião que é muito mais complexa do que isso. No Islã, há lados muito bonitos. É nessa questão que a Ciência da Religião atua, fornecendo conhecimento em prol da tolerância, no sentido da aceitação do outro, que não é mero “ele fez outra escolha, tudo bem”, mas no sentido de entender que cada um vive numa subjetividade, e que é tão forte para o outro quanto o é para mim. A Ciência da Religião tem essa tarefa de oferecer um conhecimento sistemático e detalhado das religiões, inclusive aquelas que não fazem parte da tradição dominante. Isso pode servir para a superação da intolerância religiosa.

O ensino de religiões no currículo de base das escolas seria uma saída?
Sem dúvida. Em outros países já é assim. Na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos… A Ciência da Religião é a disciplina de referência para o ensino religioso. Vejo como a única saída e a maior contribuição da escola para a formação cidadã suficientemente madura para suportar o pluralismo religioso, para entender que a realidade do outro é diferente, mas que tem legitimidade. Nenhuma religião caiu do céu. É um produto da nossa socialização.

O senhor acredita que será uma realidade no Brasil?
Sim, creio que sim.

Por que religiões de matriz africana costumam ser tão perseguidas?
Há várias razões. Ou há uma combinação: etnia e status social. Ou seja, o pobre e o negro. Isso por si só, do ponto de vista da maioria, já traz uma desvalorização. A cultura europeia se impôs como dominante numa cultura misturada como a do Brasil, e desvaloriza o outro chamando-o de supersticioso, de menos culto, no sentido de educação formal. E há certo medo também do que é desconhecido, da magia. Há a questão do tipo de religiosidade. O cristianismo, por exemplo, é uma religião ética. Como você agrada a Deus? Por meio do seu comportamento. Então, essas religiões mais desenvolvidas, do ponto de vista de Max Weber, são religiões éticas. Ou seja, a ética é mais importante do que o ritual. No Candomblé, por exemplo, não. A questão central é o rito. É a magia. Não tem necessariamente o mesmo nível de elaboração intelectual ou teológica que explica os mecanismos. Isso também gera certo choque, certa incompatibilidade. Considera-se a religião ética mais limpa, mais madura, menos contaminada por forças não controláveis.

Dá para desvincular da intolerância religiosa outros tipos de intolerância – por exemplo, com os homossexuais? Ou seja, há uma questão anterior, que é aceitar o que é diferente.
Do ponto de vista subjetivo, há predisposições para a intolerância. Pessoas que tem suas convicções, que necessitam de certa ordem, que não aguentam a diferença, porque a diferença pressiona a naturalidade da vida dessa pessoa. Diria que há psicologicamente uma fraqueza que se articula através da intolerância. A questão religiosa é talvez a mais fundamental. Do ponto de vista antropológico, há algumas questões que são fundamentais e a sexualidade é uma delas. Mas há também outras. Difícil dizer. É uma excelente reflexão. A sexualidade do outro, que é diferente da minha, ameaça minha cosmovisão… Há paralelos sim. A religião, contudo, sempre vai além das questões do aqui e agora. Religião trata também de vida eterna, nesse sentido a intolerância religiosa é mais enraizada em angustias existenciais do que a sexualidade.

Quando o assunto é religião, deve haver limites no humor e na arte? Citamos como exemplos os atentados ao jornal francês Charlie Hebdo e a modelo trans crucificada na Parada LGBT em São Paulo, ambos ocorridos em 2015.
Pessoalmente, acredito que sim. Como cientista, prezo pela ética pelo outro. Sabendo que a religião é profundamente vinculada a questões existenciais, a níveis emocionais sutis, acho que não é necessário. Não sou Charlie de jeito nenhum. Não estou justificando nem desculpando, pelo contrario. Foi horrível e inaceitável. Mas vi as charges e achei de mau gosto, de um nível muito baixo. Não gera elementos que iluminam a discussão. Não acrescenta nada em termos de conhecimento. Ao contrário, reafirmam os preconceitos que já existem. Quem ganha com isso?

E a questão da liberdade de expressão?
Liberdade de expressão não significa que posso fazer o que quero. Implica, neste caso, uma reflexão sobre os objetivos e os efeitos que tenho em mente com determinada informação. Se há uma vontade de melhorar o mundo, esse meio não é inteligente. Liberdade de expressão tem a ver com responsabilidade. A liberdade por si só não é um valor. Ela está vinculada com as suas finalidades. A liberdade como um princípio em si é quase uma idolatria. Idolatro a liberdade se não reflito sobre suas implicações.

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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