Theodore Dalrymple: “Se eu não tivesse escrito sobre esses assuntos, teria enlouquecido”

O que é ser pobre? Quem acredita ser um, pode pensar que sua condição é determinada apenas pelo dinheiro que não consta na conta bancária. Aquele que crê não ser, ainda que possua um blackcard, se jamais entender que dignidade é atributo daquele que nunca coloca sobre os outros a responsabilidade que lhe é própria, pode sofrer de outra variação desse mal. O psiquiatra britânico Theodore Dalrymple, um dos nomes mais importantes do pensamento atual, escreve sobre os vários tipos de miséria –cultural, social e moral– e depois de uma vida dedicada ao atendimento em periferias e prisões de países como Zimbábue, Tanzânia, entre outros do Leste Europeu e América Latina, tornou-se um crítico mordaz do modo de vida dos pobres de toda espécie. Em visita ao Brasil para lançar Não com um Estrondo, mas com um Gemido – A política e a cultura do declínio, FAUSTO conversou com exclusividade com o autor de A Vida na Sarjeta e Podres de Mimados e propôs deixar de lado relatos tristes para refletir sobre uma possível saída. Quer saber qual? Confira!

Tradução: Gustavo Filippi.

Theodore Dalrymple
Theodore Dalrymple.

FAUSTO – A maior parte dos casos que o senhor relata em seus livros não são chocantes para mim, que nasci e cresci em lugar não muito diferente das regiões de classe baixa da Grã-Bretanha. Justamente por isso, gostaria de falar sobre o que penso ser o antídoto primeiro para vencer qualquer tipo de realidade brutal: a esperança. Depois de tudo o que viu, o que é esperança para o senhor?
Theodore Dalrymple: É realmente necessário que pessoas como eu e, principalmente, como você, falem o que pensam. Pessoalmente, não passei por essas experiências, mas você passou. Então, é muito importante que você se expresse a esse respeito. No seu caso, ninguém vai chegar em você e falar: “Ah, mas você não sabe o que está falando”, como se não conhecesse esse tipo de realidade. É preciso mudar a mentalidade das pessoas que tentaram evitar que você tivesse sucesso. Você pode confirmar se é verdade ou não: algumas pessoas querem impedir que outras tenham sucesso até como forma de justificar o próprio comportamento.

Em ambientes que não valorizam a educação, é comum chamar de arrogante aquele que deseja estudar…
É precisamente esta mentalidade que precisa mudar. Não acredito que qualquer governo seja capaz de realizar esta mudança. Isso é algo que precisa acontecer no comportamento das pessoas. Acho bonita uma frase de William Blake, do poema London: “a mente cria as nossas próprias amarras” [The mind-forg’d manacles I hear]. Essa mentalidade prende as pessoas nesse tipo de comportamento.

Qual foi a principal motivação para continuar por tantos anos atendendo em bairros de tamanha pobreza?
Em primeiro lugar, era meu emprego. Depois, e tenho que admitir [sorri], tudo aquilo me proporcionava muito material para escrever. Se eu não tivesse trabalhado com aquelas pessoas, naquela realidade e naquele momento, eu não saberia nada sobre aquilo porque a minha realidade, na minha área e os meus amigos não tinham nada a ver com aquilo. Então, também achei importante informar sobre o que acontecia com aquelas pessoas.

Escrever foi então uma forma de exteriorizar o seu próprio assombro? Do contrário, o senhor teria desistido ou ficado doente?
Sim. Se eu não tivesse escrito sobre esses assuntos, teria enlouquecido. O colega que trabalhava na mesma função, antes de mim, bebia muito. Quando assumi, descobri muitas garrafas de vodka nas gavetas. Quando escrevo livros, deixo tudo mais literário, mas uma vez eu comecei a escrever um diário, só que não consegui mantê-lo porque a realidade nua e crua era insuportável. E era terrível não só no sentido da pobreza material, de não ter o que comer ou vestir, ia além.

Quando via esperança nos olhos de seus pacientes, o que sentia e pensava?
Eu tentava mostrar para essas pessoas que era possível superar aquela condição. Mas, claro, isso era muito difícil porque elas continuavam morando naqueles lugares, ambientes de muita violência. Era difícil, mas quando eu via esperança, pensava que não estava tudo perdido. Vi muitas mulheres sendo maltratas por seus homens e eu nunca dizia que elas eram somente vítimas. Claro, elas eram vítimas, mas não somente vítimas. Eu tentava mostrar o que elas podiam fazer para romper aquele ciclo. Às vezes, só de mostrar uma perspectiva, já funcionava. Muitas dessas mulheres me diziam: “Então, tem alguma coisa de errado com ele, minutos antes de começar a me estrangular, os olhos mudaram, a expressão mudou completamente”. Como se fosse um ataque epilético. Eu perguntava: “Será que ele faria isso na minha frente?” Essa pergunta soava como uma revelação. No fim das contas, elas estavam se enganando, dizendo que havia um problema clínico nesses homens.

Como ajudar pessoas em condições tão difíceis sem tirar delas a responsabilidade por suas próprias escolhas?
Boa pergunta. Em primeiro lugar, sempre tive vontade de desmedicalizar o problema. Eu evitava prescrever remédios porque, uma vez que eu fizesse isso, a pessoa ia dizer para ela mesma que havia um problema clínico, e passaria a ser responsabilidade do médico. Em casos de mulheres ameaçadas por seus companheiros, eu recomendava que elas fossem para um lugar seguro, que se protegessem, porque isso sim era uma questão de saúde. Mas eu deixava claro que a responsabilidade de não entrar mais em contato com aqueles homens abusivos era delas. Se elas entrassem em contato com eles e eles voltassem a bater nelas, elas se tornavam parcialmente culpadas. É muito mais importante dar oportunidades a essas pessoas do que necessariamente ajuda material.

Na tentativa de ajudar, já se envolveu em algum caso mais do que deveria?
Quando trabalhei na prisão, havia um homem que eu achava muito bacana, mas que era alcoólatra. Ele tinha receitas de antidepressivos e quando tomava esses remédios, tinha alucinações. Em alguns momentos ele atacava as pessoas. Quando esse homem saiu da prisão, eu não o considerava mais um paciente, mas um amigo. Ele era muito inteligente, não tinha educação formal, mas tinha uma inteligência notável. Assim que saiu da prisão, ele montou uma empresa de internet e em menos de três semanas faturou cem mil dólares. Com este paciente, talvez eu tenha sido mais amigável do que deveria. O curioso é que ele ganhou todo esse dinheiro muito rápido e de repente resolveu parar. Ele passou a acreditar que todo aquele dinheiro não seria bom para ele. Isso é bem incomum.

A esperança neste caso foi uma via de mão dupla…
Sim, claro. É muito bom quando você vê mudanças nas pessoas. Estou escrevendo um livro de memórias dessa época da prisão. Isso já faz 15 anos, mas ainda estou escrevendo. Nessa época, conheci um jovem que teve hemorragia subaracnoidea, uma doença bastante grave que pode acometer pessoas jovens. É um distúrbio na parte de trás do cérebro. Onde eu trabalhava nesta época era muito perto de um hospital, então mandei esse jovem fazer exames lá. O médico que o atendeu também era muito jovem e por isso achou que não era hemorragia subaracnoidea, e mandou o jovem de volta. Como não concordei com o diagnóstico, mandei o rapaz outra vez, só que pedi para falar com o neurocirurgião. E ele realmente tinha uma hemorragia e fez uma cirurgia que provavelmente salvou a vida dele. Assim que se recuperou, esse rapaz escreveu uma carta para a equipe médica da prisão dizendo que aquela experiência tinha mudado a mentalidade dele e prometeu que nunca mais voltaria para a prisão. E eu acreditei totalmente.

Quando começou a escrever, tinha ideia de que seus ensaios ganharam tanta repercussão?
Não, não tinha ideia. Esses ensaios foram publicados inicialmente em um jornal e quando o editor contou que ia fazer uma compilação, falei: “Não, isso é uma bobagem” [dá risadas].

O senhor ainda tem esperança?
Sim. Sempre tenho esperança. Não tenho esperança de que tudo vai ficar bem um dia, isso não. Isso nunca aconteceu na existência humana e nem pode acontecer. Mas acredito que no futuro haverá menos pessoas vivendo nessas condições. Existe esperança, mas apenas se as pessoas forem mais realistas e verdadeiras. Como você teve a ideia de mudar?

 

 

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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