Álbum de Família: santo do pau oco

O cheiro de alecrim permeia todo o ambiente principal do Teatro Estúdio, espaço das artes recém-inaugurado no centro da cidade de São Paulo.

A prática espiritual — ou apenas ritualística — não é desconhecida do diretor Jorge Farjalla, que ousa encenar Nelson Rodrigues, o dramaturgo romântico que nos ensinou a enxergar a vida como ela é, doa a quem doer.

Farjalla estreia o palco de plateia dividida com uma das peças mais polêmicas do teatro brasileiro: Álbum de Família.

Escrita por Nelson Rodrigues em 1945, foi censurada por quase vinte anos.

No palco, há um tipo de terra de cor profunda, de beleza infrequente. Todo o cenário mostra a que vieram: teatro para quem gosta de teatro. Leia-se, para prender o fôlego, para tornar o espectador testemunha de algo grave.

Minutos antes, no café-bar com decoração aconchegante como a dos estabelecimentos das artes mais consagrados pelo mundo, noto que a madeira é o elemento predominante; o que combina com Álbum de Família. O santo do pau oco.

Farjalla, na recepção, quando sou a primeira a chegar, impressiona como um mago. Sempre achei curiosa a frase que segue todos os títulos dos espetáculos que assina: “Na visão de Jorge Farjalla”.

Sentei-me.

Ousei enxergar como um mago.

Nelson Rodrigues passou pelas letras como provocador dos bons costumes, demolidor da moral, obcecado pela exaltação — como todo bom romântico —, e, como a plateia do Teatro Estúdio, dividiu seu público.

Cóleras e paixões. Furor e aplausos.

No decorrer dos 90 minutos, Jonas, personagem principal interpretado com exuberância por Alexandre Galindo, nos deixa em estado de trauma.

Álbum de Família é a terceira peça de Nelson Rodrigues, tendo sido a que mais tempo permaneceu nas mãos da censura.

Não sem razão, basta sentar-se em qualquer uma das cadeiras do teatro, não importa o lado: a aberração não faz questão de esconder o rosto; ou melhor, é rosto de duas faces.

A obra, cuja trama é uma tragédia familiar, aborda o abuso sexual, a traição, o incesto, a homossexualidade e o suicídio. Depois de Jonas, não sabemos bem quem causa mais espanto, se a Senhorinha, se Glória, Edmundo ou Nonô.

Sente saudade de Nelson Rodrigues até quem nunca o assistiu. Realizei um sonho. Também porque me cansei de textos corretos, que só podem mesmo representar um mundo que não tem mais salvação.

Disso Nelson sabia. Os mais cansados também.

A jovem moça, logo à frente, vira o rosto quando Jonas, sem compaixão, faz com que uma mulher, em trabalho de parto, lhe sorva.

Álbum de Família deixa os espectadores divididos: cabe mesmo a Nelson Rodrigues o rótulo de reacionário?

Há quem saia desse desbunde da dramaturgia, oferecido por todo o elenco, com ânsia por mais. Não são depravados, querem é lucidez.

Livros de papel vêm da madeira, madeira dos altares em que somos obrigados a nos render quando nossa natureza fala mais alto do que os freios dos anjos.

O autor pernambucano possui uma linguagem límpida, um raciocínio tão claro que dá nó na garganta. Sei que eufemismos enuviam a inteligência, mas a realidade precisa da arte — e quando a arte é tão direta, é impactante como a morte.

A beleza se faz presente do começo ao fim da montagem. Dos urros e corre-corre de Nonô ao retrato do nosso Senhor.

Se enxergo direito como o mago, a beleza é o véu redentor para aguentarmos ir fundo na miséria existencial.

Em todas as frases que assustam há inteligência, crítica, deslumbramento inconsequente, porém passível a qualquer um de nós. Penso que a fama pejorativa de Nelson soa ingênua em tempos como o nosso, de fúrias e taras a distância de um clique.

Nelson Rodrigues disseca com crueza a fidelidade, o ciúme, a dualidade do amor e do sexo e a distância moral entre nossas virtudes e agonias — tudo no chão batido de terra da religião.

O autor das paixões deve ser assistido sem medo. Afinal, nos olhamos no espelho todos os dias.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.