Amálio Pinheiro: “Jerusa não fazia oposição nenhuma a ninguém”

O assunto é ela: Jerusa de Carvalho Pires Ferreira, a grande homenageada da 3ª edição da FLIPUC – Feira Literária da PUC. Nos dias 4, 5 e 6 de novembro, importantes intelectuais discutirão os “assuntos de Jerusa”, como Fausto e cultura das bordas, sem deixar de lado, claro, outros tantos que fazem parte da agenda do mundo. Estendendo o tributo, FAUSTO conversa sobre Jerusa com Amálio Pinheiro, poeta, tradutor e professor doutor na pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, por tantos e tantos anos amigo dessa grande intelectual.

Jerusa de Carvalho Pires Ferreira. Foto: Samuel Iavelberg.

FAUSTO – Quem foi Jerusa de Carvalho Pires Ferreira na intimidade?
José Amálio Pinheiro: Jerusa foi uma pesquisadora muito dedicada. Ela tinha capacidade de se dirigir a muitas coisas ao mesmo tempo, algo que não se encontra facilmente na academia. Ela era capaz de se relacionar com “figuraças” do mundo internacional, como Eleazar Meletínski, Henri Meschonnic, Martín-Barbero e muitos outros, e ao mesmo tempo conviver intimamente com cantadores, repentistas e cordelistas do nordeste.

Sim, é muito raro. E bonito.
Isso dava a ela capacidade especial de análise. Estava sempre lidando com teorias profundas, digamos assim, mas conseguia reaplicá-las no cotidiano. Ou seja, mínimos acontecimentos do dia a dia, mínimas falas, onde aparece toda a magia do que ela acumulou, elementos afetivos, tudo isso relacionado às teorias sobre linguagem e sobre lógicas, tiradas dos autores com quem mais convivia, como, por exemplo, Paul Zumthor, que era amigo dela. Jerusa não fazia oposição nenhuma a ninguém. E participei muito disso.

Vocês conviviam muito?
Sim. Talvez eu tenha sido uma das pessoas que mais conviveu com ela nos últimos tempos. Ela entrou na PUC-SP para dar aula a partir de uma amizade que já mantinha com Paul Zumthor. Depois, eu o entrevistei e traduzimos seu livro A letra e a voz. Em seguida, propus à coordenadora de então, a professora Lucia Santaella, que a contratasse. A partir daí começamos a nos frequentar, falávamos por telefone duas, três vezes por semana, além dos encontros.

O que significa cultura das bordas, conceito tão ligado à Jerusa?
Cultura das bordas é uma tradução de todo um movimento residual e emergencial da cultura popular. Tem a ver com o fato de que os lugares mais marginais e abandonados são aqueles que produzem melhor essas traduções. Porque eles guardam este acúmulo de informação que as fases mais atuais – modernas ou contemporâneas – não conseguiram expelir.

Por exemplo?
Cantadores do nordeste. Apesar de eles não terem cultura escolar, eles têm a cultura da voz e da experiência das periferias. E com isso eles podem montar grandes narrativas. Narrativas consideradas cultas até, digamos assim, devido a esse material imenso. As bordas conservam repertório muito variado. E a partir dele fazem esse jogo verbal, inclusive cirando outros tipos lógicos que não esses em que o mal se opõe ao bem, porque de alguma maneira é uma oposição fácil de se fazer.

Sim…
Cultura das bordas não é simplesmente um amor à periferia ou ao pobre. Borda é o lugar de conexão entre elementos variados. É importante reter isso. Não que seja desimportante o fato de vir de lugares não universitários, isso é também, mas o mais importante é que serve para junções, conexões.

A cultura das bordas pode vir a ser tocada pelo mainstream? Tem como separar uma coisa da outra?
Às vezes tem. Nem deixa de estar ligado e nem é impossível de se separar. E às vezes pode ainda estar achatado pelo mainstream. Tem essa complexidade mesmo. Porque a cultura das bordas se dá em camadas. Talvez fique mais fácil de entender dessa forma, porque é assunto é para um curso.

Sim, com certeza. E é interessantíssimo!
Vejamos, por exemplo, a camada das vozes da selva, que são mantidas ainda na América Latina. Jerusa estudou muito sobre isso.

Por exemplo?
Na obra de Augusto Roa Bastos, grande escritor paraguaio, está na fala dos índios. Também aparece em Guimarães Rosa, nas vozes da floresta que passam pela tradição Tupi – ou Guarani, conforme o lugar – e entra para a literatura. Ou seja, é material adquirido e ainda está presente. As matas estão todas aí, mesmo que tenha havido bastante destruição. Além do mais, tem todo o material popular acumulado. E esse material passa pela primeira fase da indústria cultural: televisão, jornal, rádio. A indústria cultural não conseguiu eliminar nem as vozes da floresta, digamos assim, e nem o material popular. Então, começa uma mescla de tudo isso. E essa questão das vozes é algo muito importante para a Jerusa, sem ela não dá para entender nada de sua obra.

Sem dúvida.
E depois, ainda chega a sociedade eletro-eletrônica, que se torna mais uma camada. O cantor popular, por exemplo – ou o cordelista que faz uma interpretação de Fausto – ele trabalha com todos esses elementos ao mesmo tempo. Neste cruzamento, que é intercomplementar, pode haver momentos de maior diluição, ou seja, de piora de qualidade, ou também pode ser incorporado de maneira interessante e criativa. O bom é que isso evita que tomemos uma posição pessimista ou otimista demais. Ou ainda passadista, a favor do antigo; ou a favor do contemporâneo. Que seriam equívocos, em minha opinião.

Por que o fascínio dela por Fausto?
Fausto é um lugar emblemático sobre a capacidade que a América Latina – e o nordeste, especialmente – têm de traduzir narrativas internacionais, desde as do mundo mais antigo, passando pelo medieval até o atual. A Europa se liberou da Idade Média, digamos assim, mas nós não nos liberamos.

Como assim?
Temos ainda muito presente o elemento selvático e medieval. E por causa dessa multiplicidade de linguagens, vindas dos tantos povos que temos, sempre podemos traduzir – como Jerusa foi mostrando nos contos russos. E neste cenário Fausto é fundamental porque ele nasce do Doutor Fausto, que vem das narrativas populares alemãs, mas que não sabemos exatamente se foi uma figura que existiu ou em que medida foi inventada. Depois, veio o Fausto de Goethe, que é tão importante. E passou a ser espantoso o fato desse Fausto e outros tantos terem sido reescritos de maneira tão extensa na América Latina, o que mostra alguma coisa sobre o nosso continente. Desde o nordeste do Brasil, pelos grandes escritores, assim como pelos cantadores argentinos. Tanto que Borges se interessava muito pelo assunto, especialmente por Estanislao del Campo, que escreveu um Fausto que ficou famoso e teve mais de 200 edições, algo que o Fausto alemão nunca alcançou. A Jerusa cunhou o termo tecido fáustico. E não é que isso seja feito apenas com Fausto. Tecido fáustico, neste caso, extrapola a própria obra.

Sim, é bastante claro. E quais são os exemplos na literatura brasileira?
No livro de Jerusa Fausto no horizonte muitos exemplos são citados, inclusive o que chamamos de ciclo fáustico do demônio logrado, que tem Ferreiro das três idades, de Natanael de Lima. Ou sobre os contos russos no sertão, de Severino Milanês da Silva. Esses são apenas alguns exemplos importantes, em meio a um vastíssimo material. Sabe que é uma característica dos nossos faustos, o demônio quase sempre logrado. Outra coisa é que aumentam as características erótico-farsescas, digamos assim, das narrativas.

O que seria isso, erótico-farsescas?
Em vez da oposição entre bem e mal, deus e diabo, um passa a entrar no outro, através de mecanismos que na literatura chamamos de carnavalização – ou de paródia. Ou seja, o céu passa a ser meio infernal e o inferno meio celestial.

Por que a academia ainda resiste a uma escrita criativa?
Nossa academia é copiada da Europa, quando a República Francesa organizou o ensino e catalogou as disciplinas, segundo o positivismo vigente, vindo de August Comte e desenvolvido por Émile Durkheim, que foi quem a trouxe para o Brasil. A base dessa academia era composta por uma organização racional das disciplinas e do mundo. Ou seja, tinha a ver com categorias de evolução da desordem para a ordem – por isso, inclusive, “ordem e progresso”. O que isso quer dizer? Que implicava numa linguagem separada da vida cotidiana e da pluralidade que normalmente o povo tem acesso. Até hoje esse modelo frequenta a academia, não conseguimos nos livrar dele. É daí que vêm determinadas exigências de organização textual e de modos de condução do raciocínio, o que não tem nada a ver com a nossa cultura.

Sim! E com toda a beleza do que estamos falando.
Sim, principalmente isso. Você percebeu muito bem.

Aproveito para contestar porque passei por isso na pele – ou na pena. Tudo isso é tão lindo, mas não é permitido levar para o texto. Como é possível que todo esse encanto fique de fora do texto?
Tudo isso que Jerusa estudou constitui uma sociedade lúdica, rítmica e erótica. Uma não existe sem a outra. Lúdico é um lugar onde há muito riso. Veja, por isso que o Fausto é sempre traduzido dessa maneira. Não que Goethe não tenha feito isso. Ele fez. E fez porque era um escritor especial. Já Thomas Mann não pode, porque estava sob impacto do que a Alemanha tinha passado. O Fausto de Mann foi publicado em 1947, imagina! É uma grande obra, mas contém uma dose de pessimismo muito grande. A universidade foi formada segundo uma ideia de progresso da qual ela não consegue se liberar. Note como novas disciplinas sempre têm a ver com o mundo do empreendedorismo neoliberal. Quando eu era garoto e fui fazer faculdade, contabilidade e administração de empresas não eram faculdades. Elas eram chamadas de cursos de grau médio. Agora, como foram disciplinas fundamentais para o crescimento econômico, se tornaram faculdades. Ciências contábeis. Não que eu ache que seja menor, só estou dizendo que são disciplinas da ordem capitalista e não da ordem do conhecimento do que a América Latina é.

Por que é importante que a literatura discuta a “Era da Humanidade”? Antropoceno.
Antropoceno é sobre as ações destrutivas que o homem tem causado à sociedade. Agora, é preciso ter um pouco de cuidado para não imaginar uma progressão insolúvel.

Como assim?
Tenho minhas dúvidas justamente por causa desses enormes territórios, como os que ainda existem no Brasil, nos quais ainda há contínua reinvenção. A todo o momento lemos notícias sobre a capacidade que a natureza tem de se reinventar e recriar espécies a partir de situações endêmicas. Existe um jogo entre destruição e recriação que devemos dar atenção. Não acredito no antropoceno de sequência linear – nem do pior para o melhor e nem na linearidade invertida, do melhor para o pior. Creio também que não podemos observar o mundo biológico separado de todo o resto. A natureza deve ser incluída em todos os projetos de linguagem e criação que a sociedade produz. Por exemplo, seria impensável o barroco na América Latina sem a natureza, porque o barroco nasce a partir das formas naturais, o que se pode chamar de cultura em trepadeira.

Sua opinião é mais otimista.
Minha opinião é razoavelmente mais otimista.

Teremos mundo para termos leitores que lerão o que estamos produzindo? [Dá risada]
O risco é que não haja leitores nem para o que produzimos hoje e muito menos para o que já foi produzido.

Pior que é…
Imagine uma sociedade que não lê mais Machado de Assis. Agora, existe um grau de imprevisibilidade. E precisamos criar as utopias do agora.

Como assim?
Não podemos ficar pensando apenas no futuro. Precisamos viver o presente. É preciso aumentar as composições de alegria, como escreveu Espinoza. E não se trata, de modo algum, de uma alegria boboca, que viria de uma “paz interior”, porque se teve uma revelação – e nada contra quem a tenha. Refiro-me à alegria construída por um campo de relações onde as coisas todas se combinam. Eu disse esses dias para algumas pessoas que estavam sentindo calor demais: “Vocês estão infelizes porque está calor? O calor traz multiplicidade de cores, matiza a paisagem, o jogo de luz e sombra aumenta, assim como o prazer da água, e vocês estão sofrendo?” Mais ou menos o que Van Gogh via.

E tudo isso tem a ver com a Jerusa. Essa capacidade de perceber coisas tão simples, mas tão profundas…
Sim. Mesmo doente, Jerusa conversava sobre coisas alegres. Certa vez, me mandou um vídeo de dois peões de obra dançando gafieira ao lado da obra. Ela não estava bem, mas via elementos criativos e de alegria; algo que, de alguma forma, revelam algo sobre nós e que vem de longe. Há um elemento pré-humano entre nós, por isso não devemos nos preocupar com o pós-humano.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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