Termino de ouvir AmarElo, de Emicida, e me vem à mente Adélia – sempre ela, Adélia: “Toda obra-prima é insuficiente.”
O argumento de Adélia quando usa “insuficiente” é que ainda que haja uma unidade em si mesma numa obra-prima, ela sempre remete ao Absoluto. Em sua visão religiosa: Deus.

“No caminho da luz, todo mundo é preto”, canta Emicida, o rapper paulista, o poeta da insustentável leveza.
Neste trecho, ele se refere à origem africana de todos nós.
Só que a licença interpretativa que tomo, com respeito e espanto, diz sobre a escuridão que nos veste toda vez que buscamos o sentido dessa nossa vidinha de todo dia, essa vida que quase sempre enxergamos distante da “Vida”, com “V” maiúsculo, essa que deveria ser um conjunto significativo incapaz de ser ultrapassado. E no caminho da luz todo mundo é preto porque passamos insignificantes pelo olhar de Deus na procura de uma justiça própria.
É meio assim que me soam as canções de AmarElo: como salmos modernos.
Versos que remetem ao Absoluto, sim, mas não só.
Que remetem também ao Absurdo.
Quem não é Sísifo no contexto de Emicida é oprimido ainda mais. Quem não peita os deuses – ainda que pague por isso – é desprovido ainda mais.
“Amar” e “elo”, nativas de um poema de Leminski, são duas palavras importantes para o nosso tempo, mas não são as únicas sacadas deste trabalho tão belo. Na voz contundente de Emicida, significa também uma mão estendida para o diálogo.
Arrisco, então, que seja essa volta tão singela – que não muda nada, mas muda tudo – a profunda beleza do terceiro álbum do rapper: o retorno do homem à proposta inexata do Criador.
De alguma forma, a poesia das canções de AmarElo resgatam a espiritualidade cotidiana sem a qual não sairíamos da experiência da aflição. Por isso AmarElo pode funcionar como um mantra. A reza nossa de cada dia, para nós descrentes. Mas nunca uma reza tola, porque não engole o que não deve ser engolido.
O sentido religioso é a última palavra. E já que a fé sem obras é morta, sorrir é a atitude mais revolucionária.
As participações especiais em AmarElo são interessantes, é claro. Reafirmam a proposta de diálogo, combinando perfeitamente mensagem e mensageiro. Referências dão profundidade a qualquer trabalho. Referências são os ramos do conhecimento que formam a árvore que produz o ar puro sem o qual ninguém pode viver. Isso é muito forte, mas nem de longe é o melhor do álbum.
A carta de amor que Emicida escreve para um mundo em decomposição é atitude radical de quem arranca sentido do chão.
É a teima de Jacó que não deixa o anjo subir até que seja abençoado.
O sentido da vida é tão misterioso que não cabe apenas à religião o achar das respostas. Cabe à arte também, e sobretudo.
O homem tenta compreender a vida para dominá-la. Descansar no Mistério é dificílimo.
AmarElo, contudo, é um horizonte de significado que se avista e, graças a Deus, chega a tempo.
É insuficiente. Mas chega a tempo.
Dedicamos à Christina Galvão.
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