Anne Shirley encontra-se na estação de trem, à espera de alguém da família que por fim a adotará. Quando Matthew Cuthbert chega, pergunta ao policial sobre o menino que deve estar à sua espera. O oficial então diz que na verdade está uma menina.
Como se não fosse estranho o bastante – já que Matthew e sua irmã Marilla adotaram um menino –, o policial diz ao homem que sugeriu à garota que aguardasse na sala de espera, mas que ela preferiu permanecer do lado de fora. Segundo ela, porque é onde há “mais oportunidade para usar a imaginação”.
A bela passagem consta no início de Anne de Green Gables, primeiro volume da clássica série da escritora canadense Lucy Maud Montgomery, publicado em 1908.
Em tempos de agonia suprema, clássicos da literatura infanto-juvenil são soluções infalíveis, além de verdadeiros refrigérios, porque nos ajudam a reaprender a acreditar, quando não a renascer.
A literatura proporciona verdadeiros encontros espirituais! Talvez porque nos leve a lugares que gostaríamos de ir, mas não sabíamos. Ou sabíamos, mas não tínhamos coragem de dar o primeiro passo, até por medo de mais uma desilusão.
Só que não tem jeito! Encontros espirituais desnudam a alma de maneira implacável, embora só os livros sejam corteses a ponto de não constranger.
Encontrei-me na apurada sensibilidade para a beleza de Anne. Com ela divido hábitos porque dependo da criatividade para ver sentido – e só vendo sentido realizo o que faz sentido, e todo o resto é encurralamento.
Como Anne, troco o nome das coisas para nomes mais pessoais. Minha cafeteira vermelha se chama Judith; a preta, Luana. Algumas das plantas: Lily, Lola e Luli. Literatura gera identidade.
Quando Marilla questiona a mania de Anne de trocar o nome das coisas, concordo com a perspicaz pergunta que a menina faz à senhora: “você gostaria de ser chamada apenas de mulher?”
É entusiasmo para a vida interior o apreciar dos detalhes cotidianos, das miudezas que emprestam sentido e que permitem que os caminhos concedam um pouco mais do que a permissão de seguir em frente.
O que desperta magicamente a sua imaginação? Qual foi a última vez que sentiu arrepio no corpo, tamanho o deslumbramento da alma diante de algo? “Existem coisas que fazem o senhor sentir um arrepio?”, Anne pergunta a Matthew.
A literatura apura a sensibilidade para o belo. Refina a capacidade de perceber o detalhe e de interpretá-lo. A literatura torna inquieto o estagnado, desafia o desolado. Desenvolve a imaginação, desenrosca as emoções e traz à luz os sentimentos, sem expor o já ferido.
Literatura escreve com lápis mágicos tarefas que levam à realização de sonhos, porque enche a rotina de frases que despertam o espírito. Até que chegue a próxima oportunidade de abrir um livro, sua magia mantém de pé.
A pequena Anne, tão sofisticada e ávida por ser parte das belezas do mundo, não perde única oportunidade de apreciar formas, cores, texturas, aromas, a combinação de tudo isso e, principalmente, de deixar a cabo da imaginação os retoques. Não como postura de ingratidão, mas como intérprete da centelha divina.
Nobre dama ou nobre cavalheiro,
Desejamos que tenha apreciado a leitura sobre Anne de Green Gables.
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