É óbvio, claro. Sei que é óbvio. A maneira como se compreende um texto é quase sempre a maneira como se compreende o mundo. Texto lido literalmente, como na maneira de lidar com o mundo, é risco de perder o sabor todo da coisa. É risco de deixar passar o sentido raro de toda boa palavra.
É que texto é fruto que se come com tranquilidade, de mão cheia, até o miolo. Texto lido literalmente é abandono da vida. Se lido então como deve ser lido são vidas que jamais serão vividas de outro modo. São possibilidades de existir para além de tempo e espaço. São milagres de papel.
São também formas de reparação dessa única vida que temos em carne. Quantos livros não curaram a dor de ser quem somos? Quantos seres que não existem, mas existem, tomaram nossas pungências desgraçadas e as levaram com eles até a última página? Quantas vezes quando encerramos livros partes de nós não existiam mais?
Compreender um texto é estar disposto a ler o que foi escrito antes, é estar disposto a ler o que está escrito dentro. É ter em mente que passado que não lembramos é estrada sem luz sob a neblina da arrogância. Passado que se lembra, ao contrário, além de completar a leitura é luz que permite caminho mais seguro.
Texto, lido ou escrito, é lição de humildade. É magia que faz brotar sentimentos nunca vividos antes. Por isso tornam o mundo tão grande. Ou tão pequeno, se se lê literalmente.
Já para escrever é preciso ver texto em tudo. Tornar tudo um texto. Ver texto em sons, em imagens, suspiros e sonhos. Ser o texto. É movimentar-se de um jeito que a partir de então possa nascer uma história. Sentir como se fosse o protagonista de um clássico. Imaginar-se na mente de um grande autor. Quis ter sido Catherine Earnshaw. Fui tantas vezes Catherine Earnshaw.
Digo que é uma forma de preservação tornar as dores do coração prosa ou poesia, tanto faz. Destiná-las às gavetas, que seja, mas tirar o que ferventa dentro. Que se escreva e rasgue depois! Que das rasuras nos sentimentos nasça o texto mais honesto. Texto nasce mesmo é dentro. Depois é que explode para então voltar para dentro. Da imaginação. Das emoções. Da alma. Na alma, por fim, faz morada até a última lembrança.
Penso às vezes qual será o texto de minha última lembrança. Memorizo já alguns preferidos para que no fim soe com um hino. Se Deus me der a graça, quero partir recitando a prosa de minha vida. Uma prosa de amor, espero. Ainda que de um amor que não tenha encontrado o corpo. Basta ter encontrado a alma que irei em paz. Uma prosa de lealdade no amor, melhor que seja assim.
Com sorte, minha própria prosa. Aquela que ainda escreverei diante de uma janela de ferro, do chão ao teto, não importa se roída pelo tempo. Espero ver lá fora tudo que foi um dia. Ondas que já destruíram, barcos que já levaram e trouxeram, pessoas que viveram, amaram e choraram diante da linha mais bela da natureza. A linha do mar é como a leitura: ainda que ali limite, diz também que há muito mais do que podemos ver.
Texto que se lê, lendo ao mesmo tempo o mundo e o que existe dentro, é o texto que dá sentido. E não é isso que buscamos todo o tempo?
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