É verdade, um dia eu acreditei em Deus. Pensei que havia nEle um espaço para mim, tão perdida em meus próprios sentimentos. O vazio do mundo já cabia em meu coração de menina.
A primeira lembrança vem de uma noite estrelada, em que deitei no quintal de casa e via o céu cheio de estrelas. São mais de trinta anos dessa lembrança, mas a dúvida é a mesma de ontem: o que faço aqui?
Deus, claro, se revelou a mim ao longo desse tempo. Por que Ele deixaria de brincar de esconde-esconde? Brincadeiras em que sempre perdi.
Não ouso redefinir conceitos já tão pensados. De Santo Agostinho tenho apenas os cadernos borrados por lágrimas vãs, porque as dele tiveram mais serventia. O choro é a grande marca de minha espiritualidade. Deus mora nos cantos de mim, em minhas desconexões.
“Por que você me traiu?”, “Por que virou as costas quando eu mais precisei?”, “Por que me deixou tão só?”, “Por que negou seu abraço?”, “Por que pelo menos um único dia não me viu como alguém a quem pudesse amar?”, “Por que morrerei sem me ver em seus olhos?” Perguntas que doem, Deus não responde.
Minha imagem e semelhança é todo aquele que de mim tirou a fé.
Creio ou não creio?
O deus que cabe entre os pedacinhos de mim, já quebrados, é o deus que dá sentido à minha vida. Não serei inteira outra vez, mas ainda opero e cada um desses pedaços se tornou, ridiculamente, o que de mim se lembram os outros. Resiliência às vezes é mais desespero do que fé.
Há deus capaz de aliviar tanta mágoa?
Há deus capaz de restauração interior mesmo se a dor vem do ventre? Da aceitação primeira da mãe errada.
Se meus olhos ainda vivem marejados é por causa do que nunca cicatrizou, a carne viva que determina minha escrita. Creio no deus que não mandaria recado a não ser pela poesia.
Que religioso me explica a felicidade que Deus tem para mim? Que gente de fé me diz o que devo rezar quando o medo sufoca e paralisa? Que virtude há em perdoar quem sequer sabe quem eu sou? Há perdão suficiente para quem sempre soube quem eu sou?
Então um dia, tantos milhares depois, da noite de criança curiosa, deus se tornou minha máscara social. Um deus para cada dia, para todos os humores, para agradar com quem devo estar. Deus, mentira necessária para não perder o lugar à mesa.
Deus sempre foi mesmo vários. Hume rascunhou sobre isso. O deus da guerra será naturalmente representado como furioso, cruel e violento; o deus da poesia será distinto, educado e amável, o deus do comércio, sobretudo nos tempos primitivos, será um deus desonesto e impostor.
O meu deus é o deus da beleza, um homem triste de olhos ternos, a contradição em si mesmo, mas de uma força, uma força, uma força poderosamente humana.
Está aí! Se existe um momento em que creio em Deus, sem pena de mim mesma, é quando tudo em mim se movimenta com fúria ou terror. É unicamente quando sei que jamais me vomitaria de Sua boca. Nunca fui morna.
Deus me alcança quando acho linda uma canção a ponto de me desdobrar em sonhos a partir de seus tons.
Quando leio qualquer verso, de qualquer quem, dono de uma letra sensível por ser minha a mesma dor.
Quando resisto alguns instantes diante de alguém a quem amo sem saber que amo tanto assim, sem saber que há nome isso que percorre meu corpo e me consome da mesma forma que o horror, mas diferentemente a vida sou capaz de dar, e não de tirar.
Deus vive em mim quando ouço, quando leio, quando morro aos poucos fora de mim, por alguém.
A música, o livro, os dois com quem divido as impressões de tudo isso que nunca cabe tudo no meu coração.
Isso é Deus.
O mesmo que ri de mim.
Um dia saberei a razão.
Já pensei então se nunca foi sobre religião, mas sobre religiosos. Se nunca foi sobre casas de Deus, mas sobre o lar do pensamento. Se nunca foi sobre verdades e leis e caminhos corretos e santidade e salvação, mas sobre incapacidade da linguagem.
Se Deus fala a minha língua, Ele é pouco para mim. Preciso ir além! Sou realidade infinita.
Sonho meu hoje é amar a vida. Acordar acreditando, pelo menos um dia, que não sentirei vontade de chorar. Talvez seja mesmo o choro a grande marca de minha espiritualidade.
Dedico à Helena Ceneviva.
Os Comentários estão Encerrados.