Duetos – A Comédia e a inescapável necessidade do vínculo

“Todo o passeio à beira-mar foi essa inusitada reflexão sobre o nascer de novo; a função do amor, que o pensamento não alcança, mas tenta, tenta e tenta. Pensar alcança a música, a dança, o par, pas de deux de proeminência dessa nossa existência, que ninguém dispensa, porque amar é a única necessidade de unanimidade, ligada pelas pontas dos dedos.”

Esse trecho é de meu primeiro romance, NANA, em que narro a trajetória de uma mulher que descobriu a si mesma nas desventuras do amor.

Amor.

“Por que nunca se chega a uma definição, o amor é sempre um assunto novo”, escreveu o filósofo russo Paul Evdokimov.

Enquanto assistia Duetos – A Comédia, espetáculo em cartaz no Teatro FAAP, lembrei-me dessa reflexão de ser par, e lembrei-me, também, de Lecuona, para mim o mais lindo espetáculo de dança do Grupo Corpo.

Uma obra-prima dos corpos — pas de deux ao som de Ernesto Lecuona —, compreende-se tudo sobre o amor, sem a necessidade de uma única palavra.

Duetos – A Comédia coloca no palco Patricya Travassos e Eduardo Moscovis encenando quatro duetos, quatro formas de amar, em suas tantas diferenças, mas numa única semelhança: a inescapável necessidade do vínculo.

Que química a dos atores!

Com texto original de Peter Quilter, nesta versão é dirigida por Ernesto Piccolo, e é um espetáculo para rir, chorar, suspirar e nutrir a esperança desse indefinível.

O que é o amor?

Ainda em Evdokimov, o russo arrisca uma definição, mas como uma espécie de aporia: “Se uma fórmula de amor fosse possível, ter-se-ia encontrado a própria fórmula do homem.”

Discutimos se essa necessidade de amar é sui generis ou cultural. Porque, temos de convir, estamos amando cada vez menos em nome da liberdade de amar.

A contradição, penso, é devido a essa nossa necessidade de sermos nós mesmos. E a única condição que exige o amor é a de que nos desprendamos de nós mesmos — uma ideia de Santo Agostinho.

Amar de verdade tem algo de religioso.

Voltamos à Evdokimov: “À imagem do amor de Deus criador, o amor humano se propõe a ‘inventar’ um objeto sobre o qual possa se derramar.”

Os clássicos de literatura moldaram nossa forma de ver o amor. Conversamos sobre isso, aqui na FAUSTO, na entrevista com o psicanalista Christian Dunker: “Sem a palavra, o amor não acontece“.

Foi que então me lembrei de mais trechos de livros de afeto.

Em Primeiro Amor, Ivan Turgueniev concede uma fala ao pai que aconselha o filho apaixonado: “Apanhe o que puder, mas não se deixe apanhar; você pertence a si mesmo — esse é todo o segredo da vida.”

Numa época em que nos tornamos cada vez mais centrados em nosso eu, deixamos de amar, porque no amor há sofrimento, há risco, e caminhamos para superar essa expectativa “neurótica” do amor.

Há um verso de Manoel de Barros de que gosto muito: “A palavra amor anda vazia. Não tem gente dentro dela.”

Será?

O espetáculo Duetos – A Comédia apresenta quatro histórias de amor, em diferentes categorias. Como não gosto de apresentar sinopses — digamos que eu prefira a surpresa —, elas se encaixam em vários tipos de amor.

A primeira, combina bastante com uma passagem de Goethe, de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. Ainda que tantos séculos separem as narrativas, no começo de toda história de amor, tendemos a apresentar apenas o nosso melhor.

“Os primeiros passos que nos guiam para dentro do labirinto do amor são tão agradáveis, tão arrebatadoras as primeiras perspectivas, que de bom grado os evocamos. Cada parte procura manter vantagem sobre a outra, afirmando haver sido a primeira a amar e a mais desinteressada, e neste embate, cada qual prefere ser vencido a vencer.”

Com o casal em cena, essa ideia tem notas divertidas e totalmente conectadas com nossa era de aplicativos de encontros — e desencontros.

A segunda história apresentada pela dupla Travassos e Moscovis trata de algo que, bom, sendo eu mulher, já experimentei com algum amigo; e, possivelmente, todas as mulheres… E revela nossa mania de achar que a tudo podemos mudar…

A penúltima história lembrou-me de Kierkegaard, em seu monumental livro As Obras do Amor:

“Também o amor se vai enfraquecendo na tibieza e na indiferença do hábito rotineiro. Ai, de todos os inimigos, o hábito é talvez o mais pérfido, e mais que todos os outros é suficientemente astucioso para jamais se deixar ver como tal, pois aquele que enxerga a rotina, está libertado deste hábito; o hábito não é como os outros inimigos, que a gente vê e contra os quais a gente se defende lutando, a luta aqui é propriamente consigo mesmo, para tratar de visualizar o hábito.”

Para mim, a história mais marcante, essa terceira.

Já a última, que é de um otimismo praticamente inexistente, trouxe-me à memória um verso de Frederico García Lorca: “O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida.”

E rimos a valer! Como rimos…

Disso também se faz bons vínculos, com boas risadas.

Assim estendo o convite aos meus nobres leitores para que assistam à peça e encerro com uma citação de minha escritora predileta, minha mãe romântica, o gênio português Agustina Bessa-Luís: “Amor e desamor se chama o caminho.”

Todos os personagens de Duetos – A Comédia tratam dessa verdade: o amor ainda é eixo.

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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