São dela também as questões fáusticas. Jerusa de Carvalho Pires Ferreira fez o seu doutorado na Alemanha, sobre Fausto. Nosso elo para sempre.
Talvez tenhamos nos cruzado nos corredores da PUC-SP. Quisera eu saber o que sei agora. E me pergunto: quantos foram os gigantes que viveram entre nós escondidos? Ou somos tão cegos que vivemos sob suas sombras sem nunca levantar os olhos para agradecer-lhes o abrigo?
Neste 2019, perdemos Jerusa de Carvalho Pires Ferreira. Domingo de Páscoa na Bahia de todos os santos. 81 anos de amor às letras.

Digo “perdemos” porque também sou parte desse empreendimento do Pensamento, de raiz católica, mas tão aberto a todas as crenças e descrenças, que só isso já é um alento.
Em quantos fins de tarde alaranjados, no alto do último andar do dito prédio novo, com suas salas tão antigas quanto meus sonhos de menina de escola pública, observei cada professor ali, tomando o seu café, e me perguntava, ávida por entender minhas omissões, se eles ainda sofriam de impaciência, depois de tantos livros.
Quem tem alma romântica não se livra do vício da idealização. Faz dos mestres estandartes – ou até deuses. Faço do meu.
Jerusa escreveu certa vez sobre Boris e Cândido que homens assim nos ajudam a atravessar tempos turbulentos e ferozes. Sei bem. Escrevo eu que eles nos ajudam a encontrar atalhos.
A homenageada da 3ª edição da FLIPUC – Feira Literária da PUC – que acontece nos dias 4, 5 e 6 de novembro, nasceu em Feira de Santana, em 1 de fevereiro de 1938. Ocorreu-me perfilá-la por ser ela também de Fausto.
Jerusa de Carvalho Pires foi grande ensaísta, autora de 20 livros e mais de 200 artigos para revistas e mais outros livros. Entre eles, Fausto no Horizonte, um estudo das diversas versões populares desse nosso homem que vende a alma ao diabo em troca de tudo aquilo que ainda desejamos.
Também o Livro de São Cipriano, pelo qual ganha o Prêmio Jabuti. Mais Fausto, mais Fausto…
Quem vai à escola com prazer encontra mais rápido o significado da vida. Ou a busca é mais cheia de encantos, no mínimo.
Jerusa tinha tanto prazer em ir à escola que fez dela o seu sustento até enquanto pode. Formada em Letras, mestre em História Social e doutora em Sociologia, dedicou sua vida ao Saber, esse de S grande mesmo.
Tornou-se também livre-docente em Comunicação Social e parte da grande mídia que nunca mostrou o rosto, Jerusa colaborou para a Folha de S.Paulo.
Da simplicidade do dia a dia se enchia de inspiração e interpretava com profundidade o que quase sempre passa despercebido.
Quem ainda vê graça na oralidade e dela percebe o fio da História?
Quem ainda respeita a memória?
O conto popular e o cordel, quem tira tempo para saber mais e se encantar?
Jerusa conheceu o mundo. Viajou como conferencista! Que nome bonito. Diz-se isso sobre alguém que tem de fato algo a dizer ao mundo. Sobre o amor, outra vez; e sobre as letras, outra vez mais.
Esteve na Universidade de Moscou, na Rússia; na Universidade de Calgary e de Ottawa, ambas no Canadá; em Limoges, na França; assim como na Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha; e na de Brown, nos Estados Unidos.
Tão das artes também, Jerusa tocava piano, cantava ao violão, dançava forró. Sim, compunha, é claro que compunha. Quem lê tanto quase sempre escreve tanto, ainda que engavete quase tudo, porque nem tudo deve ser dito… Ou lido.
Senhora das línguas, falou francês, inglês, alemão e agora a língua dos anjos. Sua escrita sem fronteiras ia para a Rússia e voltava para a Bahia, para o sertão, para o povo simples.
Como prova das raízes que nunca negou, a porta de seu apartamento, em Higienópolis, era uma antiga porta de sua casa de infância. Que inusitado! Que simbólico! A única porta de meu passado que eu usaria é a do esquecimento.
Ouvi em qualquer lugar, não sei, mas sei que ouvi bem, que só se passa a viver de verdade depois que se casa, se vive junto e se separa. Assim foi com Jerusa. Sua natureza inquieta não permitiu o destino de toda mulher de seu tempo.
Com Boris, contudo, Jerusa soube reconstruir-se.
Sim, Boris Schnaiderman, aquele de meu Tolstói.
Quem se despediu de nós em 2016, foi seu marido.
Porque tinham tanto amor pela literatura tornaram suas vidas concretas menos enfadonhas. Que prazer a convivência a dois com discussões sobre finais de romances!
Eu quebraria pratos enervada com quem discordasse de mim sobre o injusto fim de Anna.
Quando ouvir falar de cultura das bordas, saiba que foi Jerusa de Carvalho Pires Ferreira quem criou o conceito. Para ela não existia isso de hierarquia quando o assunto era cultura. Tudo era importante.
Temos muito que aprender com ela.
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