Marcelo Coelho: “Opinião discordante nos leva a descobrir novos argumentos”

Semanalmente no Ilustrada, Marcelo Coelho escreve sobre diversos assuntos. São sempre artigos melodiosos pelos quais é quase possível ouvir sua voz. O estilo de sua escrita mescla a leveza da crônica com um toque substancial típico dos ensaios acadêmicos. Mestre em Sociologia pela USP, o jornalista também é membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo e possui romances publicados como Noturno e Jantando com Melvin. Atuante na grande mídia desde o início dos anos 1980, acompanha de uma posição privilegiada – para o bem e para o mal – as mudanças que estão acontecendo no jornalismo e principalmente nos leitores. Para a FAUSTO, com exclusividade, Marcelo Coelho bate um papo sobre literatura, sobre saber ouvir e ler para debater, além de como seremos como leitores daqui a 50 anos.

Foto: Leticia Moreira/Folhapress.
Foto: Leticia Moreira/Folhapress.

FAUSTO – Há uma bela frase em Kafka que diz que o livro é o machado que deve quebrar o gelo em nós. Ainda hoje a literatura tem a função de nos revelar a nós mesmos?
Marcelo Coelho: Sempre terá essa função, que não é exercida apenas pela literatura. Toda ficção, mesmo comercial, como no cinema ou na TV, nos leva ao mundo do “e se fosse assim?” E é natural que pensemos, por exemplo, no que faríamos se estivéssemos no lugar de tal personagem. O próprio relato histórico tem essa dimensão moral: “O que eu faria?” Mais ainda, qualquer história que ouçamos numa mesa de bar pode ter esse efeito também. Quanto mais nuançada a história, mais cheia de circunstâncias e problemas, mais difícil tornará nossa resposta a essa pergunta, claro. Por isso, obras de maior qualidade literária em geral sofisticam essa questão, vinculando as circunstâncias, as atenuantes de determinado comportamento, de modo a que possamos igualmente entender uma outra personalidade, além de especular sobre nós mesmos. De todo modo, esse é apenas um dos aspectos da literatura; a arte literária propriamente dita, que pode ser muito diferente da pura ficção ou do romance, talvez vá além desse conhecimento psicológico e moral, ensinando-nos também a ver o mundo com outros olhos, substituindo nosso “eu” cotidiano pela visão original, pessoal, de determinado poeta ou escritor.

O que foi que você pensou quando leu nos jornais que a blogueira Kéfera vende mais livros que Machado de Assis?
Normal, porque preferir o mais fácil ao mais difícil é tendência comum. Claro que Machado de Assis não é tão difícil assim, mas imagine se a pergunta comparasse Kéfera ao Finnegan’s Wake… Há uma espécie de pirâmide, ou funil, aí. Para chegar a apreciar Finnegan’s Wake eu tenho de ter uma vasta cultura literária, tenho de ter lido milhares de livros antes. O livro de Kéfera, que não conheço, certamente pode arrebanhar pessoas sem nenhuma leitura prévia. É quase estatístico. De resto, o problema nunca foi diverso. Walter Benjamin tem um texto em que apresenta o que os alemães do século XVIII liam enquanto Goethe escrevia suas obras-primas. Era muita porcaria, claro. As listas de leitura pesquisadas por Robert Darnton, na França do século XVIII, mostram o predomínio da pornografia sobre Voltaire e Rousseau… Autores dessa dimensão ganham no longo prazo. Por mais que Kéfera venda muito hoje, daqui a cem anos Machado de Assis terá vendido mais… [Sorri].

É muito ingênuo acreditar que a leitura forma bons cidadãos?
Gostaria que não fosse tão ingênuo assim. Afinal, se a literatura nos leva a compreender outros pontos de vista, e a entender as razões de quem faz coisas aparentemente erradas, deveria ser uma escola para a democracia, para a tolerância com relação aos demais. Mas tenho dúvidas de que na prática isso funcione; ser um bom cidadão, na vida real, envolve ações e por vezes sacrifícios, enquanto que entender o ponto de vista alheio sentado numa poltrona há de ser mais fácil…

Por que é tão difícil ouvir o que o outro tem a dizer? Por exemplo, poucas pessoas leem autores com os quais não se identificam.
Toda opinião discordante nos leva a um trabalho extra, o de discutir, o de descobrir novos argumentos, e isso nem sempre é bem-vindo. Agora, é normal que queiramos ler autores com quem nos identificamos. Tenho muita desconfiança dos que apreciam a arte de Louis-Ferdinand Céline a despeito das convicções nazistas do autor. Identifico violência fascista e grosseria a cada linha de seus livros, por mais “bem escritos” que sejam. O bom são os autores com quem temos algum tipo de afinidade prévia, como Proust ou Roland Barthes para mim, e que, a partir dessa afinidade, ampliam o meu mundo. Ou seja, me tornam “maior” do que eu era, sem deixar de ser eu mesmo.

Temos aí um grande problema quando citamos mais livros do que os lemos de fato?
Há livros que podem ser citados sem que necessariamente os tenhamos lido integralmente. Todos sabem o que significa Dom Quixote ou o processo de Kafka, mesmo que não tenham lido esses títulos. Mas é claro que na maior parte das vezes o livro não se resume a uma imagem, a um emblema, a um símbolo humano, e citar sem ter lido é uma desonestidade.

Quais são os livros que o marcaram profundamente?
Em Busca do Tempo Perdido, de Proust; Os Ensaios, de Montaigne; Mitologias, de Roland Barthes; Viagem à Roda de Meu Quarto, de Xavier de Maistre; os ensaios de Borges; contos de Voltaire; histórias de Sherlock Holmes e Agatha Christie; Monteiro Lobato; O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Marx; a obra de Bergson; poemas e ensaios de Valéry; os textos críticos de Sartre; Ortodoxia, de Chesterton; Ao Vencedor as Batatas e Que Horas São?, de Roberto Schwarz; Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro; A Rive Gauche, de Herbert Lottman, entre tantos outros.

Como imagina que os leitores de hoje no Brasil serão daqui a 50 anos?
50 anos não é tanto tempo assim. Continuaremos falando da Semana de 22, de Machado de Assis e Guimarães Rosa. Os livros serão mais baratos, se é que não serão gratuitos, e continuarão a ser lidos por uma relativa minoria…

 

 

Lili Castro Escrito por:

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