Márcia Xavier de Brito: “Frankenstein adverte para o orgulho intelectual desmedido”

Parte da coleção Medo Clássico, Frankenstein, a obra mais famosa de Mary Shelley, chega às principais livrarias do Brasil em uma nova – e belíssima! – edição. Márcia Xavier de Brito é quem assina a tradução e conversa com a Fausto com exclusividade sobre o romance que há exatos 200 anos encanta e gera inúmeras reflexões. Ambição, vaidade, orgulho intelectual, os limites da ciência. Os pontos são diversos. Quem já se envolveu com o drama moral – e monumental! – de Victor Frankenstein, acompanhe a reflexão da tradutora que há 19 anos apresenta com maestria obras de autores como G. K. Chesterton, Russell Kirk, Christopher Dawson, Theodore Darlymple, entre outros. E quem nunca teve a oportunidade de ler Frankenstein, chegou a hora!

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Fausto – Dois séculos depois, podemos considerar Frankenstein uma obra cuja importância ultrapassa os meandros da própria literatura?
Márcia Xavier de Brito: Frankenstein é um clássico. E como todos os clássicos, transcende as intenções originárias do autor e alcança temas que tocam o humano, daí a permanência na cultura. Podemos incluir a criação de Shelley na categoria dos “mitos”, ou seja, uma maneira de expressar um conteúdo mais profundo, de expor verdades e princípios fundamentais por intermédio de uma narrativa que ultrapassa o tempo e o espaço.

Por que na categoria de mito?
Frankenstein causa uma impressão profunda nos sentidos, independente do estilo literário e da circunstância histórica em que foi escrito. Sua característica mítica transcende a narrativa e fala ao coração do leitor e à sua humanidade e caminha de mãos dadas com a tragicidade da história que versa sobre o mistério da vida e a perversão do conhecimento; sobre o orgulho cego e a curiosidade desmedida; sobre consequências de escolhas, sobre amor, amizade, sacrifício e caridade… enfim, sobre características demasiado humanas e dramas por que todos nós passamos em nossas vidas. Então, diria que a obra não ultrapassa, mas engrandece aquilo que chamamos de literatura universal.

É possível traçar um paralelo entre Victor Frankenstein e o homem do nosso tempo?
Uma análise detida do romance reforça a ideia de Frankenstein ser uma história moral. A ambição desordenada, o desejo não contido pelo conhecimento a qualquer preço, um senso de cumprimento de destino e o perigo de isolar-se do amor e da amizade ameaçam transformar qualquer homem em monstro. Essa monstruosidade tem sido uma constante em nossos dias. Vivemos uma cultura de morte, de subjetivismo, de louvor à técnica e à ciência sem limites. Victor Frankenstein é um contraexemplo e nos faz ficar vigilantes para os elementos monstruosos de egoísmo, orgulho e autossuficiência que trazemos dentro de nós.

Mary Shelley foi uma romântica. Ou seja, avessa à modernização do mundo. Podemos interpretar o monstro como um de seus medos ou como previsão do futuro?
Creio que aversão à modernização não seria o caso de Mary Shelley. Ela cresceu em um lar intelectualizado, em que as descobertas da ciência eram saudadas com entusiasmo. A questão romântica em Mary parece repousar numa inquietação generalizada do período de buscar significados universais e as origens do homem. A influência do idealismo alemão, via Coleridge, que era amigo pessoal de seu pai, William Godwin, a fez acreditar que qualquer “todo” – seja uma criatura, um poema ou uma nação – sempre significavam mais que a mera soma das partes que o constituem. A beleza do “todo” surge de um princípio vital interno que confere unidade, daí, Mary ressaltar ao longo de toda a obra o erro de Victor Frankenstein: crer que da beleza isolada das partes inanimadas conseguiria erigir um “todo” igualmente belo e conferir-lhe unidade. A feiura do monstro, que nunca é explicitada no livro, advém exatamente de sua constituição fragmentada e é a causa de todos os infortúnios. Seria algo como uma oposição fundamental entre o mecânico/empírico e o orgânico/natural. Creio que o medo é o medo da fragmentação.

É possível outra leitura?
A saga da criatura inominada pode ser vista como uma leitura do mito do bom selvagem. Ao “nascer” o monstro é essencialmente bom, um “cavalheiro natural”, mas, ao educar-se e conhecer o homem é pervertido e passa a nutrir sentimentos mesquinhos e de vingança. Se o romance for lido como uma fábula moderna, adverte também para os riscos do orgulho intelectual desmedido, visto que a ideia da possibilidade de descobrir o mistério da vida pela ciência povoava o imaginário do início do século XIX.

Perde-se a dimensão de uma obra como Frankenstein se não se tem consciência da importância da religião na vida do homem?
Na verdade, a temática da religião não precisa ser levada em conta na obra Frankenstein, muito embora possam ser feitas leituras mais espirituais da obra. Alguns críticos a situam como uma obra eminentemente secular. A ausência de Deus da narrativa pode ser justificada pela própria origem familiar da autora, mas isso não retira da narrativa o aspecto moral.

Mary Shelley era religiosa?
Não. Filha de dois intelectuais radicais, progressistas e entusiastas dos valores da Revolução Francesa, Mary nunca foi exposta a ambientes religiosos e o máximo de contato que teve com algo que poderíamos chamar de “espiritualidade” foi acompanhar as pesquisas do amante e posterior marido, o poeta Percy Shelley, a respeito de sociedades secretas místicas como os Iluminatti. Em Frankenstein, o Criador e o Diabo entram como alegoria pela constante referência ao poema épico Paraíso Perdido de John Milton desde a epígrafe até a elevação do poema a uma das obras educativas da criatura, que o toma como uma história verídica. Em muitos aspectos, Frankenstein parece ser uma releitura do épico miltoniano. Vale lembrar que, no momento do lançamento de Frankenstein, muitos acusaram a obra de impiedade, pois seguia a interpretação gnóstica e romântica de elevar Satã ao posto de um herói rebelde. Podemos ver um exemplo disso, na seguinte fala da criatura inominada de Shelley: “Muitas vezes considerei Satã como um símbolo mais apropriado para minha condição, pois muitas vezes, como ele, quando via a satisfação de meus protetores, exasperava uma inveja acre dentro de mim.”

Qual a principal diferença entre a leitura que se faz hoje e a que se fez na época que a obra foi lançada?
Ao contrário de algumas leituras atuais e mais espiritualizadas dos valores universais tratados pela autora, os leitores da época pensaram se tratar de uma paródia da religião cristã, um escárnio de Deus e da Criação. Há críticos que consideram Frankenstein como o romance que dá início a uma linhagem de romances “não cristãos” na literatura.

Qualquer tentativa de criar vida por parte do homem é uma tentativa de ocupar o lugar de Deus?
Victor, no início do romance, não pretende ser um rival de Deus, mas ser útil à humanidade ao seguir, com fervor religioso, o racionalismo da ciência, algo muito em voga no século XIX. Na cegueira de seu fanatismo, corrompe o processo de criação e gera, pelas próprias mãos, a vida. Da manipulação dos mistérios da natureza traz à vida um ser disforme, monstruoso, que Frankenstein rejeita desde o início como uma aberração. Do ponto de vista do monstro, Victor é, sim, uma espécie de ‘deus’ e é por essa perspectiva emerge o caráter impiedoso do romance citado acima. Victor, ‘deus’ do monstro, se revela um criador negligente, impiedoso e injusto. Daí a crise de identidade do monstro com o Adão e o Satã de Milton. Como Satã, o monstro se percebe como um símbolo do desespero, da violência, do pecado, da solidão e da condenação e, como Adão, não tem esperança de redenção.

O tema escolhido por Mary Shelley tem um propósito prático?
Advertir para os perigos da ciência e da busca desmedida por conhecer o mistério da vida. É por isso que sua criação tem ainda hoje um significado importante, visto que as descobertas da ciência moderna para prolongar, modificar ou criar vida evocam as mesmas questões sobre o que é a vida e o que é o ser humano.

Victor e Fausto cometeram o mesmo pecado?
O paralelo entre Frankenstein e Fausto é tentador, dada a importância do mito de Fausto nas narrativas de transgressão na cultura ocidental. Entretanto, há uma distinção clara entre Frankenstein e Fausto. Na obra de Mary Shelley, a transgressão de Victor não se dá pela presença de nenhum tentador demoníaco e parece que Mary não conhecia a obra de Goethe na época que escreveu seu romance. Victor não tem nenhum grande tentador, a não ser ele mesmo. Talvez, um tentador menor pudesse ser identificado no professor de Química da Universidade, o Sr. Waldman, que apresentou ao jovem Victor os mistérios da ciência moderna, desmistificando os antigos alquimistas. Se Victor Frankenstein é uma espécie de Fausto, é um Fausto sem Mefistófeles. Frankenstein é um romance secular. A lógica da narrativa traça uma cadeia de consequências prováveis de uma premissa pouco plausível, sem recurso a nenhum tipo de intervenção mágica ou sobrenatural. Por isso, muitos identificam o romance como um precursor do gênero ficção científica. A história se desenrola em um mundo sem Deus, cuja menção só se dá na referência ao épico de Milton. Mary Shelley faz uma leitura descontextualizada do Paraíso Perdido, sem anjos, sem demônios e sem Deus, um passo além nas heresias românticas de Satã como um herói.

Arriscando uma brincadeira de adivinhação. Como Mary Shelley se sentiria se vivesse em nosso tempo?
Talvez ficasse encantada pelo progresso da ciência, mas, por outro lado, creio que desapontada com a imutabilidade da natureza humana e a falha do projeto de homem iluminista.

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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