Novos sóis

Eu lavava um copo na pia da cozinha. Foram dois segundos. Apenas dois segundos. Lá fora, o sol raiava esplendoroso. Um calor absurdo tomou conta como se fosse o próprio diabo. Ou o próprio anjo da paixão, destruidor de passados que não se quer mais lembrar. O único capaz de apagar dores excruciantes em segundos. O amor que retorna traz consigo o milagre da renovação.

Isso que me invadiu me abriu perspectivas para segundos sem-fim que ainda virão. Um novo mundo se abre cada vez que surge nova uma sensação. Novas sensações são novos sóis. Pode até ser triste a verdade de que não dá para esperar que brilhem para sempre, mas é lindo saber que é possível permitir que deixem marcas na pele. Sensações deixam marcas na pele. Deixam marcas quando vão ao limite. Quero viver no limite.

Não sou de sol, sou de lua, já é sabido. Apesar de o sol ser convite para sair de mim mesma, é na lua que me sinto mais segura. Medo de ser vista? Talvez. Cansaço de existir? Creio que sim. Desesperança de futuro? Minha melhor aposta.

Desesperança de futuro é redundância. Esperança é a própria capacidade de crer no amanhã. Não creio. É morte em vida não ser capaz de fazer planos. Não faço.

A temperatura determina o risco da aventura. Sob o sol tenho medo de amar mais do que posso aguentar o rompimento, porque amor de sol é diferente, é cheio de possibilidades reais, possibilidades que ocupam espaços, possibilidades de cinema de rua e restaurantes com toalhas de chita. Amor de lua é mais profundo, macera mais a mente do que a carne, ainda quando macera a carne. E tormentos mentais são fáceis de dominar quando se domina a arte da escrita. Eu domino. É a única coisa que domino. Do resto padeço vulnerável.

Na ausência de luz sigo crendo que não sou vista. Amor de humanidades sombrias, gritos que não cessam de ecoar. Sob o sol o amor é de exatas e a conta quase sempre não fecha. Tenho medo de dívidas do amor. Sempre tomam tudo o que tenho.

Contudo, houve algo que não sei dizer nesses dois segundos. Um frio no baixo ventre, um sorriso no olhar que não pude conter, um pensamento lascivo. O sol queimava lá fora. Agora desejo novos sóis.

Quero indagar minha grandeza, potencializar minha curiosidade, esmiuçar cada nova sensação: de onde veio, para onde vai. Serão essas minhas novas perguntas essenciais. Seguir cada uma como se segue com o olhar a criança para a qual tudo é novo.

Quero conhecer minhas medidas. Qual o tamanho de minha lealdade? Quantos metros de dignidade me cobrem? Quanto disso posso ceder a outros ou permitir que tirem de mim à força? Quero me questionar antes que o destino o faça. Não permitir que nenhuma de minhas capacidades adormeçam, intocadas, porque me estigmatizaram. O único estigma em que caibo é o da beleza transfigurada.

Se o destino não possui outro açoite além da infelicidade, como escreveu Zweig, e minhas costas já estão marcadas de tantos cortes, guiada por sensações não quero mais morrer, quero queimar até perder o contorno triste dos meus olhos para não ter que justificar nunca mais o que os transformaram. Se minha própria infelicidade é o meu chão, piso nele com força, sentindo-o a cada passo. Entretanto, sob novos sóis. Volto o meu rosto para o céu. Quero queimar.

 

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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