Onde existo para além de mim?

Deitada em minha cama, olho para o teto branco, liso. Engulo um pouco de saliva amarga, sinto descer por mim como veneno, cinza. Escrevo no teto em pensamento. Com palavras brinco de enganar o mundo. Guardar é um pouco morrer. Escrevo então para não me acovardar.

Uma lágrima escorre e tem cor de medo. Não é de sal, não é de nada. Lágrima que não tem gosto é choro desperdiçado. Escrevo, escrevo e o teto continua branco, porque é mesmo indizível…

Foto: Roberto Naar.

Onde existo para além de mim? Nas palavras. É o meu lugar seguro, onde ainda que eu seja jogada ao vento, posso emocionar, como o vento; causar algum impacto, como o vento; tocar um outro, como o vento. Que relevância tenho fora delas? Nenhuma. Com elas, ao menos uma possibilidade.

Escrevo o tempo todo, ainda que sem tinta e papel. Escrevo e ouço escritos que saem de bocas que desconheço o gosto. Palavras me cortam, mas com elas também aprendi a matar, como morri muitas vezes.

Revisito todos os dias meu desejo de escrever o indizível. Tenho o sonho de dar nome ao que é impossível de entender. O milagre que o amor é capaz de fazer nas memórias, a lágrima que escorre sem ordem porque têm desejo próprio e rompe a face. Alegria, gratidão, é prazer irromper por qualquer razão, só não, jamais, viver de apatia. Apatia é doença do espírito. É demônio frouxo que não tem coragem de brigar.

Meu tempo passou há dois séculos, sou órfã, uma romântica que se alimenta de vazios. Tudo que existe em mim tem raízes nos túmulos alemães, por isso acendo velas para Schiller. Concentro meus pensamentos para interromper meus tremores.

Quero sair e respirar. Sentar à beira de mim, quase caindo. Olhar para trás para me olhar de fora. Deu-me Deus esse dom e vício, essa agonia e privilégio, essa paisagem cinza e nevoenta, essa emoção de criança que nasceu sem elo.

Meu desejo delirante de escrever é também o de existir para além de um corpo, de largar um peso no ar, de pensar ser possível respirar quando não há mais ar.

 

Dedico a Rodolfo Lutfi, pelo incentivo diário para que eu me tornasse finalmente quem sou.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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