Pequenas mortes
“A vida acaba onde o ‘Reino de Deus’ começa.”
— Nietzsche, O Crepúsculo dos Ídolos.
Filósofos por todos os séculos escreveram sobre a morte. Para Nietzsche, a vida termina quando nos tornamos cristãos castrados. Quando ao nos tornarmos cristãos, tomamos a decisão de abrir mão dos prazeres da vida pelo “galardão” final, futuro, celeste.
Como Justin Vernon, ou “Bon Iver”, escreveu: Heavenly father, all that he offers, is safety in the end.
A estrutura religiosa tradicional é voltada para o escathon, para o fim. A vida aqui nessa terra é apenas um ensaio, um teste para o futuro e Deus, por sua vez, como um papai noel glorificado, entrega no fim dos tempos o prêmio que cada filho mereceu.

Se o filho foi naughty, malvado, um prêmio fogoso. Se foi nice, bondoso, um prêmio eterno, celestial. E aqui reside o grande dilema daqueles que seguem o Deus invisível: abrir mão dos prazeres do mundo para alcançar o prêmio celeste, ou sucumbir às tentações da vida, e perder de vista um futuro de eterna paz.
O dilema, tão óbvio, se encontra em toda parte do imaginário da poesia brasileira. Um dos meus exemplos favoritos se encontra na canção A Lógica da Criação, de Oswaldo Montenegro: “Se Deus criou o desejo, por que que é pecado o prazer? Nos pôs mil palavras na boca, mas que é proibido dizer.”
O curioso dessa equação conhecida, desse dilema tão real e presente em toda e qualquer religião, é que ela escapa por completo do que Jesus, na sua simplicidade, ensinou.
Jesus disse para seus seguidores: “Aquele que perder a vida por amor de mim… irá encontrá-la.” O que Jesus ensina aqui pode ser entendido pelos parâmetros da religião delineada acima. Eu perco minha vida por uma devoção subjetiva, que vive morrendo pelo que considero pecado, e a recebo de novo no fim, no futuro. A morte, nessa ótica, é uma morte ao pecado, que na religião, basicamente corresponde a tudo aquilo que é bom na vida. Inclusive, nesse tipo de religião, tudo aquilo que amamos fazer, Deus provavelmente odeia. Essa é a estrutura que Nietzsche, como um profeta divino, critica.
Contudo, Jesus não tinha em mente o que muitos líderes religiosos durante os séculos necessariamente tinham em mente. Enquanto estes ensinavam os devotos a morrerem para vida/pecado no dia a dia, Jesus ensinava sobre vida em abundância e sobre uma liberdade que só seria encontrada diante da veracidade da verdade que o próprio Jesus falava e vivia.
Enquanto líderes religiosos ensinavam devotos a carregarem renovados pesos para fazerem a vida ainda mais miserável – mas ao mesmo tempo, mais “agradável” a Deus -, Jesus ensinava que sua religião era para os cansados e sobrecarregados, que, ao chegarem a ele, seriam aliviados de seus respectivos fardos. Assim, percebe-se a incoerência histórica entre o que a religião humana fez com a simplicidade do Jesus morto por seus ensinos subversivos e o que de fato Jesus ensinou.
Então, como entender a fala de Jesus sobre perder a vida e encontrá-la? Jesus, nessa fala, estava ensinando uma nova forma de vida. Uma forma de vida marcada por pequenas mortes.
Jesus ensinou que é através da morte que passamos a viver. E ao morrermos essas pequenas mortes diariamente, encontraremos vida, aqui, agora.
Pense numa semente. A semente encontra seu telos, seu propósito de vida na morte. Na morte que acaba gerando nova vida. Na entrega que gera a flor do jardim. E assim com a semente, a vida do seguidor do verdadeiro Jesus, é marcada por pequenas mortes, mas não por uma morte relacionada aos pecados que pregadores com microfone na mão costumam pontuar, não. A morte aqui é mais interior, mais humana, é a morte marcada por abrir mão de minha própria vontade e viver uma vida que inclui o outro em minha própria história. Uma vida na qual o bem-estar do outro faz parte do meu próprio bem-estar. Uma vida na qual o amor a Jesus, na verdade, não é materializado por sacrifícios individualistas, mas por pequenas decisões diárias voltadas ao outro.
Por exemplo, quando oferecemos perdão antes do ofensor pedir, quando cumprimos as promessas feitas para nossos filhos antes de deixarmos nosso lar a trabalho, quando deixamos de pensar no nosso lucro individual para ajudar aquele que nada tem. Essas são as pequenas mortes que cadenciam a verdadeira vida daquele que segue o verdadeiro Jesus, e não a versão religiosa que tudo faz para seu próprio benefício.
Quem sabe, ao vivermos morrendo uns pelos outros, encontraremos a verdadeira vida. E quem sabe, quando de fato morrermos para essa vida, essa morte física será celebrada como o ápice de uma vida que já tinha sido marcada por pequenas mortes que geraram vida além da vida individual em si.
A morte que gera vida, de acordo com Jesus, é uma promessa para uma vida melhor, aqui, agora. Fácil é morrer para o que o pregador local diz ser pecado, difícil é morrer para minha teologia equivocada e individualista. Difícil também é incluir aquele que antes era conhecido como herege, pecador, e leproso em minha própria história.
De fato, a vida termina onde o Reino de Deus começa. Mas nessa entrega, um novo tipo de vida surge do silêncio da terra, uma vida cadenciada por pequenas mortes uns pelos outros.
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