Totó e Zezé poderiam ter sido amigos. Totó, o menino arteiro de Cinema Paradiso, filme de Giuseppe Tornatore, de 1988. Zezé, o menino arteiro de O meu pé de laranja lima, livro de José Mauro de Vasconcelos, de 1968.
O primeiro, o filme mais lindo que já vi. O segundo, o livro mais lindo que já li.
Em um e em outro, vi romper lágrimas de meus olhos. Mas não é novidade que se diga. Sei, sei, não só em mim. Um e outro romperam rios inteiros mundo afora.

Totó e Zezé teriam sido meus amigos. O que me faz lembrar de Manguel dizendo sobre a Literatura, essa de L grande, que primeiro você descobre a vida nos livros e depois você vai vivendo e a vida começa a soar um déjà vu.
Se não entende o que falo, viva a experiência de ler O meu pé de laranja lima. Porque é uma experiência! Significa que não será mais o mesmo.
E veja Cinema Paradiso.
Tudo é sobre amizade, sobre a vida que se vive no pulso de outro.
Chorei com Zezé e com Totó porque choro quando ferem esse meu coração que bate fora. Este, coração que tem nome de amigo, de tutor, de gigante, esse que a gente quer ser igual.
Pode ser pai, pode ser patrão, pode ser vizinho ou professor. Quem nunca sentiu bater um coração fora desconhece o máximo sentido da vida.
Totó, endiabrado, sentia o pulso da vida no ofício de Alfredo. Pedaços de filmes eram janelas amarronzadas para o mundo. Totó não sabia não ser outro. Menos ardido, menos levado, incontido. Ainda que Alfredo resistisse, sabia que no menino corria sangue raro, desses que devolve a vida.
Zezé, endiabrado, encontrou a liberdade de poder ser ele mesmo em Portuga. Mas, pense: o menino tinha apenas cinco anos quando viveu pela primeira vez o amor, filia, este o tipo de amor. E que reviravolta na história! Do desejo de matar o Portuga, o menino descobriu o desejo de ser Deus, esse que acomete sempre quando alguém machuca esse coração que bate fora.
Eu, endiabrada, faço-o às vezes inflamar de raiva. Mas como Totó, sinto o pulso da vida no ofício dele. E como Zezé… Bem, sinto raiva por não ser Deus e impedir a maldade que machuca. Minha arma é apenas a palavra bendita.
Junto-me a Totó e a Zezé porque entendo de surras por sonhar. Meu mundo de imaginação nunca coube na vida pobre que me fez, e que fez até meu mundo de imaginação, como com Totó e Zezé. Mas foi nesse mundo de imaginação que descobri o meu melhor amigo, o meu escritor preferido, o meu Alfredo, o meu Portuga. O meu pé de limão galego.
Meu escritor preferido é meu amigo, ainda que, é verdade, de alguma forma todo escritor preferido é um grande amigo. Mas é que ganhei mais, por isso olho para o mundo agora com altivez. Como Totó, que aprendeu tudo de cinema com Alfredo, aprendi tudo das letras com meu amigo.
Meu melhor amigo saiu da minha imaginação e ele é melhor ainda do que ousei sonhar. Azedo que só ele, mas sua casca fina quão doce é para mim porque ouve minhas histórias de heroína.
O presente é esse. O que na vida real pode ser melhor do que na Literatura? Quem tem a resposta e a vive, durma de joelhos. Eu durmo, porque rezo por ele. Meu amigo.
O que une as duas obras-primas é um valor inspirador, porém por demais esquecido: lealdade. Sirva a quem te fez ser como é, se te orgulha de quem é. Disse Zezé que de pedaço em pedaço é que se faz ternura.
Chorei com Totó e com Zezé. E aprendi com os dois a força de uma criança que ama: se seu amigo se perder no fogo, dance entre as chamas e o resgate. Onde está o seu tesouro, ali estará o seu coração. Na lealdade descobrirá o mundo maravilhoso que existe além-amar.
Perversos! Canalhas! Brigue com quem sujar seus versos porque não sabe o que é ter dois corações.
Eu tenho dois corações. E não me canso de beijar o seu rosto gordo e bondoso, como fazia Zezé. A vida segue e corre o risco de nos tornar distantes. Somos feitos de desculpas sofisticadas.
Totó, Zezé e eu temos em comum quem nos fez crescer primeiro na imaginação. Quem nos deu asas. Confundo-me com os dois quase sempre se sinto que não sei viver só com o meu coração. Porque preciso desse que bate fora.
Dedico ao meu amigo, tutor, gigante: Luiz Felipe Pondé.
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