Gregory Wolfe: “A literatura é como uma sonda espacial que enviamos ao Mistério”

Uma celebração da literatura! Assim prometi que seria e assim cumpro, apresentando a segunda entrevista desta série especial. E não tem como falar de amor pela literatura sem pensar em Gregory Wolfe e seu belíssimo livro A Beleza Salvará o Mundo. Pela segunda vez na FAUSTO, Gregory Wolfe discorre sobre a literatura como forma de resgatar nossa humanidade, em qualquer época de nossa vida. E, claro, do quanto também nos ajuda a entender os grandes mistérios, Deus e tudo o mais que espanta nosso coração. Por que Wolfe? Por sua vida dedicada à literatura e por nos apresentar um caminho de volta aos valores mais caros— que a literatura nunca esqueceu. Prepare um café e fique à vontade.

Gregory Wolfe.

FAUSTO – Quantas vezes um romance o “trouxe de volta” em momentos difíceis de sua vida?
Gregory Wolfe:
Muitas vezes! Por exemplo, o ano passado foi muito difícil para mim. Então me vi relendo uma série de romances que amo.

Qual série de romances?
Eles são do escritor britânico Patrick O’Brian e ambientados na Marinha Britânica durante as guerras napoleônicas. São “histórias de aventura”, sim, mas também são muito mais do que isso. O’Brian chegou a ser comparado à Jane Austen. Os dois protagonistas da série são o capitão do navio, Jack Aubrey, lutador corajoso e marinheiro talentoso – e Stephen Maturin, um médico e espião.

O que o encanta nessas histórias?
Essas histórias são baseadas na amizade de Aubrey e Maturin – eles são diferentes, mas se completam. Um é grande, forte, simples e corajoso; o outro é pequeno, pobre, intelectual e complexo. Um é protestante e o outro é católico. Mas esses dois homens apelam para os dois lados dentro de todos nós – o “interior” e o “exterior”. E a única coisa que eles compartilham é o amor pela música: Aubrey toca violino e Maturin, o violoncelo. De certa forma, os dois homens defendem uma ideia de civilização e o que significa ser humano.

Quais romances mais o impressionaram por seu realismo, fazendo-o acreditar que sua própria vida era uma espécie de déjà-vu? Como diz o escritor argentino Alberto Manguel.
Os romances de Walker Percy, um romancista americano. Ele foi capaz de escrever sobre o que significa ser uma pessoa pós-moderna, alguém que tem acesso a confortos e entretenimento, mas que internamente sofre de tédio e desespero. Contudo, seus protagonistas, ainda que sejam tentados a se desesperar, acabam vivendo algum evento em suas vidas que os colocam numa “busca”.

O que seria essa busca?
Essa busca – por significado e propósito – ajuda-os a ver que o coração humano está quebrado e precisa de cura. Cura que não podemos alcançar nós mesmos, mas deve vir de um Outro. Seus livros me deram uma grande percepção sobre as maneiras pelas quais os pós-modernos sofrem com o divórcio entre a cabeça e o coração, entre a ciência e as humanidades.

Por que nunca nos arrependemos da ilusão que um romance nos causa?
Porque é uma ilusão que serve à verdade. E porque nós entramos livremente, sabendo que isso expande nosso mundo, nos chamando para fora de nosso próprio ego e amor-próprio.

Quem o apresentou ao fantástico mundo da literatura?
Minha mãe. Ela costumava ler para mim quando criança. Lembro-me especialmente de ela ler poesia para mim – em particular, “Jaguadarte”, de Lewis Carroll. O que me emocionou nesse poema não foi o assunto, mas o jogo da linguagem – como usar palavras de maneira imaginativa poderia ajudá-lo a entender o significado das coisas. Como a “forma” era importante assim como o “conteúdo” de toda grande escrita.

Lembra-se do primeiro livro que causou grande impacto em sua vida?
Na tentativa de me lembrar de minha infância para responder à sua pergunta, percebi que havia dois livros que me impressionaram quando menino.

Quais foram eles?
Johnny Tremaini, de Esther Forbes e Otto of the Silver Hand, de Howard Pyle. O primeiro se passa durante a Revolução Americana e o segundo na Idade Média. Quando tentei lembrar por que ambos os livros me causaram uma impressão tão poderosa, percebi que nas duas histórias o menino-protagonista feria gravemente uma das mãos. Eu acho que o que me comoveu foi que esses garotos cometeram erros e sofreram algumas das crueldades do mundo, mas seu quebrantamento tornou-se um sinal de sua humanidade – e uma fonte de força e esperança.

Qual é a importância dos clássicos para entender melhor a religião?
Que a religião é um fenômeno universal e a prática da religião é natural para a humanidade. A ideia moderna é que religião é para crianças – que é um legado da “infância” da humanidade e que agora somos todos adultos. Só que esses mesmos adultos – esses ideólogos da modernidade – anseiam por sua experiência de infância – as experiências penetrantes de beleza, deleite e maravilha que perderam!

Sim…
Acabei de ler Gilgamesh pela primeira vez e fiquei surpreso com a sofisticação e a ironia dessa história. Sim, tem histórias de deuses que às vezes são perversos ou caprichosos, mas o coração dessa epopéia é que Gilgamesh vive numa ordem sagrada e ele viola essa ordem através de seu próprio orgulho. Aqui está a primeira grande obra literária da humanidade e já fica claro que dois mundos coexistem, que você não pode entender o natural sem o antinatural – e vice-versa. Já existe uma consciência de que não nos criamos sozinhos, mas que fomos criados, e que nossa vida é um dom e um mistério. Essa é a essência do senso religioso nos seres humanos.

E para entender Deus?
Espere, você acha que podemos entender a Deus? Como meus filhos diriam em suas mensagens de texto… LOL.

[Dá risada]
Mas, sim, acho que os clássicos de nossa literatura podem nos ajudar a entender um pouco sobre Deus. Muitas pessoas têm apontado a semelhança entre poesia e oração – ambos usam palavras para fazer perguntas, implorar por graça e misericórdia, para gritar de dor ou de tristeza ou de desorientação, para defender aqueles que são fracos e para advertir aqueles que são fortes. A literatura é como uma sonda espacial que enviamos ao Mistério. Ou dito de outra maneira – é como aquela fotografia que os astrônomos fizeram do buraco negro há algumas semanas: não podemos ver dentro do Mistério, mas podemos ver algo de sua forma, além do seu impacto na realidade.

Qual é o maior romance de todos os tempos?
Você sabe que é uma pergunta impossível, certo? Podemos chamar a Divina Comédia de Dante de um romance? Às vezes acho que é Dom Quixote. Outros vezes acho que é Moby Dick. Pode ser Os Irmãos Karamazov. Talvez Middlemarch? Guerra e Paz? Embora eu não tenha certeza, porque estou lendo pela primeira vez. Mas não conte para ninguém.

[Dá risada] Quão ingênuo devemos ser antes de abrir um livro?
Tão ingênuo quanto possível! O pior leitor é o leitor cínico. Quando você lê um livro, seu primeiro impulso deve ser o de render-se, submissão. Você tem que mergulhar abaixo da superfície da água e deixar a corrente levá-lo. Isso não quer dizer que você tenha que desistir de sua capacidade crítica. Mas se você não se deixa seduzir pela visão do autor, para permitir que ele faça sua mágica, você não terá o direito de julgá-la.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.