Dom Quixote, o drama poético em cartaz no Teatro Renaissance, é um verdadeiro encanto!
É um presente que devemos dar a nós mesmos, porque enleva a alma — e nunca precisamos tanto desses enlevos como hoje.
Na peça dirigida por Fernando Philbert, com texto de Geraldo Carneiro, quem vive Dom Quixote é Leonardo Brício e Sancho Pança é interpretado por Kadu Garcia.
Não somente durante a peça, mas também quando li o tomo de Miguel de Cervantes, sempre me perguntei: por que o título do romance não é Sancho Pança?
Dom Quixote é um dos personagens mais conhecidos da literatura — assim como Fausto —, e seu fiel escudeiro quase sempre recebe os méritos devidos, mas não tenho certeza.
No espetáculo, permanece o teor de encanto do considerado primeiro romance da história — publicado no início do século XVII —, embora a produção aborde temas do contemporâneo.
O Cavaleiro da Triste Figura de Brício continua sonhador e romântico, sempre trazendo à tona sua doce Dulcinéia.
Por sua vez, o Sancho de Kadu é quem o questiona, em seu tom característico proverbial, sobre outras necessidades e lucidezes, uma vez que as relações, românticas ou não, estão cada vez mais deixando de ser idealizadas — ou estão criando idealizações piores.
O Dom Quixote de Brício vive sucessivas derrotas, cai e se levanta e não perde o espírito de aventura. Ele se mantém firme na convicção de que vale a pena lutar pelos seus ideais.
Seus princípios continuam elevados, como esses mesmos ideais continuam utópicos; mas Sancho… Sancho é pura leveza, quase uma contradição porque é ele que mantém os pés no chão.
Kadu Garcia tem um talento impressionante de inverter os papéis, mas sem tirar o brilho de seu colega de cena, ou de seu senhor. Reforço minha ideia, só minha, de que Sancho Pança sempre me pareceu mais interessante.
Sancho Pança é um camponês, representante do povo espanhol, que acomoda os provérbios consolidados pelo tempo à sua maneira e de acordo com as circunstâncias.
O Sancho Pança de Kadu Garcia continua proverbial, mas adaptado aos nossos tempos. E é magnífico! É impossível sair do teatro sem se sentir mais leve, mais aberto para amar, e, logo, mais quixotesco. Porque um não existe sem o outro, ou se existem, não possuem a mesma força, porque é o contraste que dá a riqueza de uma aventura partilhada.
Pela nobreza simplória, mas absoluta de Sancho, porque, mantendo-se fiel a Dom, não apenas o presenteia com lealdade e amizade, mas também não destrói suas ilusões, impulsos imprescindíveis para Dom.
Nós, que nos achamos moderníssimos, temos poucas características dos dois personagens.
Não somos cavaleiros, muito menos escudeiros. Trocamos a aventura pelo alto desempenho. Substituímos um rosto amado, pelo qual deveríamos sonhar todas as noites, por listas de tarefas que colocaremos em prática antes do sol nascer.
Assistir a Dom Quixote, portanto, é um presente, quase um dever.
Ainda que o espetáculo seja uma leitura livre da obra de Miguel de Cervantes, ele nos encaminha ao Dom Quixote de la Mancha original, porque esse fio do encantamento raro, mas ainda entre nós, é uma luz no fim do túnel dessa nossa existência esmagadora.
A peça ainda exala encanto pelo cenário simples, mas muito aconchegante, assinado por Natália Lana, e os figurinos moderníssimos de Karen Brustollin. Só nisso “o que há de mais moderno” cabe com maestria.
No mais, tomara que sejamos capazes de continuar apegados aos clássicos. A tudo que passou pela prova do tempo: a bravura, a lealdade, a amizade e, principalmente, a capacidade de sonhar os próprios sonhos.