Helen Jacintho: “O agro é um setor que preserva enquanto produz”

Podemos viver alienados ao agro, mas não alheios. Porque agro é cotidiano, é trabalho, é memória afetiva: quintais, sítios, hortas, cozinhas e mesas grandes para refeições fartas. A literatura brasileira da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX tem essa ambiência. Tal assimilação e comparação, no entanto, hoje não é fácil. A ideia atual acerca do agro espelha estereótipos e práticas antiquadas. A província, a terra, o ciclo da vida e do dia — desde o sol nascente ao poente — é densa de significados e de beleza culta. Exclusivo para a FAUSTO, Helen Jacintho, produtora rural, colunista de agronegócios da revista Forbes Brasil e presidente do grupo ForbesMulher Agro, conversa a respeito do que considera um “hiato” na comunicação entre o setor e a sociedade nos últimos 40 anos. Também dialoga sobre a necessidade de construir um imaginário — responsabilidade da literatura —, que sugiro ser de urgência, e ela corrige: “reconstruir”. Se hoje o agro é pop, pouco importa a essa revista de solo fértil; somos da vivência rotineira, poética, confessional e demasiadamente humana. O agro quando conta uma história individual conta a história da humanidade.

Helen Jacintho
Helen Jacintho.

FAUSTO – Um dos mais importantes filósofos contemporâneos, o inglês Roger Scruton, trata em seu livro Filosofia Verde o conceito “oikophilia”, que se refere, grosso modo, ao amor ao lar, e o Scruton chama a atenção para a responsabilidade de cuidar desse lar, dada a obviedade de nossa necessidade de alimentação e segurança. Posto isso, qual é a maior mentira que se propaga sobre o agro?
Helen Jacintho: Vamos trocar “maior mentira” por maior hiato, maior buraco, que é o que aconteceu nos últimos 40 anos, paralelo a uma verdadeira revolução por dentro das porteiras. O setor do agronegócio investiu em tecnologia, novas técnicas, desenvolvendo toda uma forma de trabalhar baseada na preservação do meio ambiente, da vida, do solo, da água, de energia, sem falar que temos pessoas extremamente trabalhadoras, os números mostram. Temos resultados excelentes no PIB, batemos recordes de produtividade, só que ficamos do lado de dentro das porteiras e não nos movimentamos para comunicar para a sociedade toda essa mudança.

Seria preciso estabelecer um canal de comunicação entre o campo e a cidade, campo e a mídia, campo e as redes sociais…
Precisamos aproximar as pessoas do agro para que elas voltem a se interessar pelo setor, porque o agro é apaixonante, é um setor no qual o ciclo da vida se desenrola diante dos olhos; ou seja, o agro não se relaciona apenas com a economia, trata-se da nobre missão de alimentar milhões e milhões de pessoas, no Brasil e no mundo. No momento estamos num período de crise energética, crise alimentar, e o Brasil é um dos países que produz energia limpa, além de alimentos de forma sustentável. Nossa meta, como setor, é mostrar que podemos trabalhar de maneira sustentável, não precisamos desmatar mais nem um palmo de terra. Esse aumento de produção — e de produtividade — acontece em áreas previamente ocupadas por pastagem degradadas. Precisamos construir canais de comunicação, porque eu, se não fosse do setor, e recebesse as mesmas informações, pensaria como a sociedade pensa. É nossa obrigação, como setor, apresentar o que temos feito nos últimos 40 anos.

Como o agro deveria ser visto então? Principalmente para nós que estamos na cidade e vivemos “alienados”, embora não alheios.
As pessoas poderiam enxergar o agro como um setor que sempre quer acertar. Sinto o produtor rural como um eterno otimista. Ele planta esperando que vá chover, está sempre atrás da última tecnologia, do último método de economizar água, energia, de usar o menos possível de recursos naturais. Hoje temos sensores que medem a umidade do solo a fim de que usemos menos água, o produtor não vai devastar seu próprio solo. O produtor quer um perfil de solo rico em matéria orgânica, minhocas, micro-organismos, um solo vivo, que retenha umidade, porque assim ele consegue fazer duas, três safras na mesma área, no mesmo ano. O agro é um setor que preserva enquanto produz. De acordo com a Embrapa, mais de 30% de toda a área preservada do Brasil está dentro de propriedades rurais, e é preservada pelos próprios produtores rurais. O produtor rural produz e preserva ao mesmo tempo, e é uma missão nobilíssima: produzir alimentos, gerar emprego, renda, proporcionar dignidade às pessoas no entorno. Fico encantada ao falar do setor porque realmente sou apaixonada por ele. Temos dificuldades? Temos! Temos gargalos, precisamos acabar com o desmatamento ilegal, que é um problema muito grave do país e que o setor do agro também quer resolvido, pois o desmatamento ilegal feito por grileiros e madeireiros mancha o nome dos produtores rurais.

Os criminosos são exceção. Com quem ninguém convive.
Produtor rural tem CPF, endereço, se ele desmatar ilegalmente ele vai preso. Os madeireiros e grileiros nos incomodam, sujam o nome do agro, não são produtores rurais. No agro, as pessoas são dinâmicas, interessadas, não são apenas agrônomos e veterinários. Hoje, há possibilidade de trabalho em diversas áreas

Por exemplo?
Temos uma associação que se chama De Olho no Material Escolar, que leva crianças para vivenciar o dia a dia no campo. Elas se encantam, porque têm tantas possibilidades!

E em um país riquíssimo.
Temos solo fértil, luz, água, possibilidade de fazer duas, três safras por ano, povo trabalhador, nossa condição é maravilhosa! Para uma criança, essa conexão com a terra é de fazer brilhar os olhos. Elas se conectam com o campo, com os animais, com a lavoura, aprendem os nomes das plantinhas. Se você cresceu dos 5 aos 18 anos ouvindo falar mal de um setor, você vai querer trabalhar nele?

Não.
É por isso que precisamos atualizar essa leitura referente ao agro. Porque o agro é um setor pujante, de oportunidades, que tem um déficit de mão de obra especializada. Estaríamos fechando uma porta de oportunidades para essas crianças. Estamos com muitos projetos sustentáveis, e temos sorte de ter a Embrapa. Outro dia, conversando com um senhor da Embrapa, fiquei encantada enquanto me contava de uma vespinha e como ela punha seus ovinhos. As possibilidades são infinitas, tanto na parte tecnológica quanto na parte biológica.

Como na literatura.
Como na literatura. Existe um leque de possibilidades. Estávamos conversando antes da entrevista, isso de ficar arrepiada. Fico arrepiada com um solo vivo, entende? Isso que se fala de “ah, o produtor põe fogo”, produtor nenhum põe fogo em solo vivo.

Quem pensa com o mínimo de lógica consegue concluir que não faz sentido mesmo. Sabe que eu amo cozinhar, é uma paixão mesmo, e um de meus momentos preferidos é quando vou ao mercado e entro em contato, principalmente com o hortifrúti. Parece exagero, mas depois que adquiri mais conhecimento sobre o agro — e por isso estamos aqui — comecei a reparar em produtos que eu nem fazia ideia de como eram feitos. Sei lá, podemos pegar o milho como exemplo…
Hoje produzimos etanol de milho! Há muitos produtos. E é tudo muito conectado. Tem outro detalhe: não existe o agro da cidade e agro do campo: o agro começa no campo e está na cidade. O parafuso é produzido na indústria, que também monta o trator, daí o trator vai para o campo, produz o milho, que volta para a indústria (ainda que seja numa usina) para se transformar em etanol, encerrando no porto para ser exportado. Pensa na quantidade de pessoas que essa cadeia emprega, o quanto ela gera de renda, como leva dignidade. Há quem fale: “Ah, o agro concentra renda”, mas é o contrário: o agro é a maior escada para as pessoas subirem de nível socioeconômico. O IDH de cidades onde o agro está é sempre maior.

Sem enfrentamento.
Não gosto da comunicação lacradora, porque ela fecha as portas da comunicação. Temos que nos colocar no lugar das pessoas e tentar entendê-las: se eu recebesse o tipo de informação que circula hoje, pensaria igualzinho. Tenho uma coluna escrita e em vídeo e meu principal comentário é: “Legítimo seu questionamento”, porque é legítimo mesmo, a pessoa recebeu aquela informação. Busco falar, por exemplo: “O senhor já ouviu falar dessa pesquisa?”, “Talvez goste dessa informação”, “O que acha disso?”, “Se quiser me chamar no privado”. Entendo que é importante esse questionamento, porque gera conexão, gera conversa que só enriquece. A comunicação lacradora fecha portas.

Vê a necessidade de uma construção do imaginário, que parte da cultura e da literatura, que, a meu ver, mostraria um Brasil mais profundo? O que chamo de imaginário é o que nos dá essa capacidade de nos conectarmos e nos emocionarmos, como acabamos de fazer aqui. Só é possível construir um imaginário rico através de bons livros, de uma educação formal que não esteja dissociada dos valores, da moral. Existe a necessidade dessa construção ou esse imaginário já existe e só precisa ser mostrado?
Precisamos reconstruir esse imaginário. Precisamos reacender, porque é como falamos no começo, antes de começar a gravar: todo mundo, antigamente, tinha um pezinho no agro, havia um pé de manga no sítio da avó que todo mundo subia, tinha uma granja, uma roça. Então, precisamos reacender, reconstruir esse imaginário, precisamos renovar nosso orgulho pelo Brasil, porque nossa missão é nobre. Nosso país é responsável por manter a segurança alimentar do mundo, e é uma missão muito nobre. Temos de ter orgulho, como temos o de ter o Pelé; alguns artistas, referências na música, na literatura.

Concordo plenamente.
Veio ao Brasil, no ano passado, o Alok Sharma, que foi presidente da COP26. Ele ficou encantado com nossa forma de trabalhar e chegou a dizer: “Precisamos levar esse modelo para o mundo”. Para isso, precisamos mostrar, relembrar, reconectar as pessoas com suas raízes, contemplar o que é o plantar, o colher, a lua, a chuva. Principalmente: precisamos reconectar as crianças com a terra, os vegetais, tudo, tudo, tudo.

E essa missão é apartidária?
É apartidária, totalmente. É 100% apartidária, porque se trata de uma missão nobre, produzir alimentos, gerar emprego, levar dignidade para as pessoas, é missão do Brasil, independentemente do governo A ou B. Temos de pensar em nosso país a longo prazo, pois temos condições que outros países não têm, se soubermos largar a polarização, esse “Fla-Flu”.

Que está cada vez mais difícil…
Temos um agro que preserva, temos combustíveis renováveis, não queimamos carvão, como outros países fazem. Precisamos preparar nossos jovens, despertar neles a vontade e a curiosidade de resolver problemas. Ninguém está negando a história, tivemos muitos desafios, como vários países tiveram, não negamos, é história. História é história. Estamos falando de preparar jovens para os desafios que vêm pela frente, como vamos construir o Brasil do futuro, o agro 5.0, que é fazer a tecnologia chegar ao campo. Como levaremos a internet para regiões cujas máquinas precisam de internet para funcionar; como levaremos tecnologia para o pequeno produtor. Isso ainda é um gargalo do setor. Temos que abrir o coração e a cabeça das crianças, em vez de criar nelas ranço e ideias atrasadas.

Como sair dos extremos? De um lado, as opiniões sem embasamento; e do outro, os vieses ideológicos.
Os extremos sempre vão existir, precisamos escolher o que queremos. Creio que devemos nos basear na ciência: números, dados, fatos. Temos que pensar nos materiais didáticos e temos a Embrapa, que é respeitada internacionalmente; temos a ESALQ (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), a UNESP (Universidade Estadual Paulista), a Universidade Federal de Lavras, temos pesquisadores fantásticos. Vieses sempre vão existir e devemos escolher o caminho do bom senso, da conciliação, da educação, o caminho que leva ao futuro.

Como vê o crescente número de novelas ambientadas no campo?
Vejo de maneira positiva, porque é uma demonstração de que existe interesse do público pela vida no campo, principalmente quando os dramaturgos conseguem retratar o que é vivido, de fato, hoje em dia; mostrando, por exemplo, os esforços para a sustentabilidade, os avanços da tecnologia, os cuidados com a preservação da natureza, a geração de emprego etc. O que vemos, às vezes, é somente uma caricatura, o que não acrescenta nada para ninguém, nem para o espectador, menos ainda para o setor. É bacana a ambientação, é interessante fazer a conexão; agora, essa coisa do caipira, do coronel… Está na hora de colocar na novela uma família lutando com dificuldade para conseguir, por exemplo, um financiamento para realizar um projeto sustentável.

As últimas três têm coronéis que mandam matar…
Pois é… Não acrescenta nada, não retrata a realidade.

Por que muitos jovens estão se interessando pelo setor?
Porque é um setor dinâmico, moderno. Temos sorte porque nosso agro é jovem, em outros países o setor está envelhecendo. A idade média do agricultor no Brasil é de 46 anos, contra 58 do americano.

De que forma as mulheres podem ocupar um espaço no agro?
As mulheres já ocupam espaço no agro. Elas ocupam espaço considerável, inclusive, gerindo propriedades, em cargos de gestão, liderando grandes empresas; estão também em parceria com irmãos, pais, maridos. Existiu, no passado, a ideia de que a propriedade não ficava para a mulher porque era difícil de gerir; hoje, não; hoje é de igual para igual. Se não me engano, aumentou em 44% o número de propriedades geridas por mulheres entre os dois últimos censos.

É bastante!
É bastante, bastante mesmo. Existe um movimento grande, Eliana. Faço parte de diversos grupos. Quando comecei a trabalhar no setor, há muitos anos, era solitário, ia a certos lugares e só tinha um bando de homens. Morei mais de 15 anos numa fazenda e não havia muitas mulheres. Hoje, há grupos de mulheres que se apoiam de verdade, que levantam discussões interessantíssimas. São mulheres de fibra, com histórias que emocionam. Tenho uma amiga que ficou viúva e tocou tudo sozinha, cuidando ainda dos três filhos; outra, cujo pai morreu e tocou tudo sozinha em Rondônia na década de 1980! Chegavam lá e pediam para falar com o gerente e ela encarava: “Pode falar comigo”. São mulheres de fibra, mulheres que são tratores, que abriram caminho pelos quais percorremos hoje.

Como também não cair na caricatura da mulher atuando no agro?
As histórias das mulheres são as mesmas dos homens. Não há muita diferença. Claro, as mulheres ainda têm carga mais pesada, considerando a questão da maternidade, por exemplo, quando optam por ser mães, ou têm que cuidar dos pais, dos sogros, da casa. Mas as mulheres assumem com braveza. Outro exemplo de como era no passado: era mais difícil uma mulher tomar um financiamento agrícola no nome dela, existia sempre uma indagação sobre o marido ou o pai, embora sempre foi preciso, como se precisa até hoje de bens dados em garantia ou bons avalistas. As “mulheres tratores” abriram caminho e hoje não há mais essa realidade. Quando acontecem histórias de preconceito, é claramente problema do indivíduo, e não o pegamos para nós.

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.