Nicole Cordery: “Na arte, o risco é sedutor”

Apaixonei-me por Nicole Cordery quando encenou Outono Inverno — Ou o que Sonhamos Ontem. Sua presença de palco inebria. Em cena, caía sobre uma mesa de madeira maciça como uma ilusionista. A partir daquela noite, desejei que minhas quedas existenciais fossem igualmente assombrosas, para me trazerem inspiração. E sua voz? Conversar com ela é como estar dentro de um filme. Os elementos que descrevo fazem parte da magia do teatro, que é como correr para as montanhas e viver um momento que só poderia ter sido criado por Deus — pelos deuses, certamente o é. Indicada aos prêmios APCA 2015 de Melhor Atriz por Dissecar uma Nevasca e ao Aplauso Brasil 2015 de Melhor Atriz por Ato a Quatro, Cordery é uma atriz de empenho. Nascida em Niterói, formou-se na CAL, em 1996. Em São Paulo desde 2000, integrou o Grupo Tapa até 2006; morou em Paris de 2006 a 2010, onde cursou a École Jacques Lecoq e a Universidade Paris 3, Sorbonne Nouvelle, fazendo mestrado em Estudos Teatrais. Garra não é uma palavra elegante para defini-la, então escolho “moira”, que vem das lendas gregas de Fatum, determinadora do destino. Prova disso é sua criação, a Platore. Além disso, Nicole é autora do livro Cadernos de Viagem Herdados, publicado pela Editora Claraboia em 2022. Para a FAUSTO, ela conversa sobre essa magia: o teatro.

Nicole Cordery
Nicole Cordery. Foto: Philip Lavra e Isadora Relvas.

FAUSTO — Por que devemos assistir a peças de teatro?
Nicole Cordery: 
O ser humano precisa se ver espelhado para se compreender melhor. Isso pode ser feito de diversas formas: com um filme, livro, ao vivo. Gosto de pensar que, quando assisto a uma peça de teatro, um concerto, uma ópera, um espetáculo de dança, estou aceitando entrar num jogo, aceitando um risco. Acredito que os “atores” em cena são outras pessoas que não elas mesmas e fico quieta para assistir à obra. É um pacto silencioso. Durante aquelas horas, permanecerei em silêncio. Posso chorar, posso rir, mas darei o protagonismo àquelas pessoas e não à minha vida. Depois, aplaudo e volto para a minha própria existência. É um jogo que é jogado desde a Grécia Antiga — ou mesmo antes. E eu gosto de jogá-lo. As pessoas que admiram teatro também gostam de jogar e se colocar nesse “risco”.

Eu amo jogar esse jogo! Bom, você acha que a presença física do artista é o que causa a grande mágica no teatro? Diferentemente da literatura, por exemplo, em que o leitor não está perto do escritor…
São apreciações diferentes. O tempo do leitor é dado por ele. Escolho ler aquele livro no meu tempo, posso escolher voltar naquele trecho inúmeras vezes, mas no teatro não. É efêmero, tenho que estar ali, atenta, ligada. A peça que aconteceu naquele dia não se repetirá da mesma forma. A mágica é causada pela presença e pela vulnerabilidade do ator, mas também do técnico de luz, som, vídeo, dos diretores de cena. Há seres “invisíveis” no teatro que colaboram para a magia acontecer. O teatro é uma arte coletiva. Para um ator brilhar são necessários meses de ensaio, pesquisa, choro, dúvidas, medo. A magia se dá devido à repetição de gestos, entendimentos, partituras e cumplicidade entre os atores e a equipe técnica e artística. Já no universo da literatura existe um preparo que pode levar muitos anos daquele autor. É uma briga silenciosa do autor com ele mesmo. É mais solitária essa investigação na literatura do que a do ator em criação de um espetáculo.

Para o ator, o que é o teatro?
Para mim, é a volta para casa, para o conhecido, é o contato com minha essência. Envolve risco diário, mas foi a escolha que eu fiz aos oito anos — e que sigo perseguindo.

O que foi tão claro aos oito anos? Uma cena na TV, no próprio teatro, como isso aconteceu?
Durante a apresentação de uma peça curta, na escola, percebi essa função social do teatro. Essa possibilidade de ser um canal para viver outras personagens. O que me fascinou não foi o reconhecimento ou a fama de estar em destaque em relação às outras crianças, mas a percepção de que eu sabia fazer aquilo. Eu sabia dar voz a outras existências e me sentia bem fazendo isso. Outras crianças eram boas em outras atividades; já eu, sabia fazer aquilo, não tinha vergonha, gostava de criar vozes e personalidades para personagens diferentes de mim, e, acima de tudo, sabia sustentar essas pequenas existências durante ensaios e durante uma apresentação. Hoje, consigo elaborar esse “insight”, mas é claro que na época foi tudo muito intuitivo. Quando vejo fotos da época, percebo essa consciência no olhar da criança Nicole. Olhando em retrospectiva, depois dessa experiência, nunca mais parei de fazer teatro.

Não existe outra possibilidade então a não ser a de ser atriz?
Nicole Cordery:
Olha, quando já vivemos mais tempo de vida — do que ainda temos para viver — sendo atriz… acho que fica meio tarde para exercer ou aprender outra profissão. Gostaria muito de ser bem remunerada pela minha profissão. Lutarei por isso até o fim. Contudo, não deixarei de ser atriz por conta disso.

Para o espectador, o que é o teatro?
Como espectadora, antes do início de cada peça que assisto, quando a luz se apaga, ou quando sinto que a peça vai começar, tenho o hábito de respirar fundo, fechar os olhos e mentalizar: “Que a magia comece. Que eu me conecte com esta história.” Vou ao teatro para me conectar com histórias e me transportar para outros mundos, mesmo que o mundo sugerido seja a minha própria vida. O que importa para mim é essa possibilidade de conexão, que quando é real transporta-me para a magia.

Qual é a imagem, a ilusão, a personificação que mais se aproxima da sensação do ator quando ele está no palco?
Ah, é muito louco. É a possibilidade de ser outro. A possibilidade de assumir a loucura. A sensação de estar pleno.

Quão melhor é a atuação do ator se ele é um bom leitor? Conta muito no sentido de descer fundo na natureza humana?
Não acredito em atores que não leem. É a base de tudo. Quanto mais lemos, mais conhecemos o “outro”. E quanto mais conhecemos o “outro”, mais reconhecemos a nós mesmos.

O teatro é um lugar no qual o etarismo não alcança?
É uma excelente pergunta. Não sei se sei responder. Quando se é uma atriz que inventa os próprios projetos, a faixa etária das personagens vão aumentar conforme nossa idade. Mas de fato a energia e a força de produção diminuem por conta das alterações hormonais e do próprio envelhecimento. Atualmente, tenho trabalhado mais no audiovisual do que quando eu era jovem, contrariando as estatísticas. Não que isso seja uma regra, mas essa tem sido minha experiência. Sinto que quanto mais velhas ficamos, mais vivência e sabedoria temos para interpretar diferentes papéis. Nesse sentido, sinto que a idade ajuda. Há menos ansiedade, menos desespero e mais conhecimento de si — e da vida — para alcançar notas mais sofisticadas de atuação.

O que no envelhecer para uma atriz é diferente para uma mulher “comum”?
No meu caso, nada. Acho que qualquer atriz é também uma mulher comum. Algumas mulheres escrevem, fazem pão, ensinam, são arquitetas, médicas ou podem escolher o campo da atuação. Ao envelhecermos, somos capazes de interpretar outras personagens, pertencentes a essas novas idades. Um diferencial é que no teatro posso interpretar uma menina também, mesmo aos 50 anos, ou alguém com muito mais idade, graças a convenções teatrais. Não encaro o envelhecimento como alguma maldição. O fato de ter mais rugas, do corpo ficar mais flácido é inerente ao ser humano, e uma atriz interpreta seres humanos, então para mim está tudo certo. Nunca associei o envelhecimento a estar mais ou menos bonita. Envelhecer é ser sobretudo humana, em suas diferentes idades.

Qual lenda da dramaturgia foi inesquecível assistir no palco?
Gostei de ter visto a Isabelle Huppert nos palcos parisienses, assim como gosto de ver em cena a Denise Weinberg, a Clara Carvalho, desde os anos 1990. Elas só melhoram com o passar do tempo e é muito rico para uma atriz acompanhar esse aprimoramento. Assisti recentemente a Georgette Fadel em cena e foi, mais uma vez, inesquecível! Vi diversas vezes a Fernanda Montenegro e sempre encaro essas oportunidades como aulas de atuação.

Qual personagem sonha representar em sua “última” peça? Alguém que lhe daria a certeza de ter vivido uma vida de total significado — independentemente de todos os percalços?
Huuum… Você acredita que não tenho esse tipo de desejo? Realmente acredito que nosso caminho se faz ao caminhar. Deixei de acreditar que existe um “lá”, um lugar para chegar. Então, não penso em “última peça”, não acredito que alguma personagem possa me trazer essa sensação de ter vivido uma vida de total significado. Nunca sonhei em fazer Julieta, Blanche, Nora ou Nina. E já fiz protagonistas lindas como a Eliane do Tambor e o Anjo, Elisabeth Vogler de Strindbergman, Alice Toklas de Alice, retrato de mulher que cozinha ao fundo, Rainha Cristina de Dissecar uma Nevasca, Alice do Ato a Quatro, Medeia de Terra Medeia. Sei que posso defender protagonistas, mas acho que minha tessitura é um pouco “fora da caixa”.

Nenhuma a intriga?
A Arkádina, da Gaivota do Tchecov, é uma personagem que me intriga… mas sou jovem ainda para ela. Atualmente, ensaio uma peça do Bruno Cavalcanti, estudo a Zelda Fitzgerald, personagem rica e dificílima. Tenho o desejo de falar sobre Ruth Escobar, estou com um texto do Dan Rosseto que quero muito levantar, onde faço a Karen, outra personagem louca e riquíssima. Uma vida cheia de significado — independentemente de todos os percalços — venho vivendo no dia a dia. Gostaria de estar mais em cartaz e estou entendendo como posso viabilizar isso. Os projetos são muitos, a vontade também. Em novembro faço 50 anos e estarei em cartaz. Essa possibilidade me enche de alegria e me conecta com aquela menina de oito anos que só queria contar histórias.

Para o artista, hoje, empreender é um caminho sem volta?
Nicole Cordery: Acredito que sim. Embora nem todo artista sinta essa necessidade, esse chamado.

Você sente?
Olhando para trás, percebo que sempre apostei em minhas escolhas; sempre me produzi, desde minha formação na Cal, em 1996. O termo que usávamos na época era “ator que se produz”. Eram fundamentalmente peças de teatro. Hoje “empreendo” no teatro, no audiovisual, criando redes sociais, criando videocast. Então, diria que, hoje em dia, um ator que só espera o telefone tocar para convites relacionados à atuação, pode estar em crise, ou com baixa de trabalho.

Percebe isso entre seus colegas?
Vejo muitos atores desenvolvendo outras atividades para poder pagar as contas. Essas atividades podem estar relacionadas ao mundo da atuação, como locuções, dublagens, aulas de teatro, escrita de roteiros, edição de vídeos, mas, também, podem ser de outra natureza — aulas de yoga, pilates, inglês, corretagem de imóveis, Uber, pintura de casa.

É a vida de quase todos nós…
O importante é estar em paz com essas escolhas. Toda atividade profissional exercida por um ator pode e deve nutri-lo. A parcela de atores que trabalham exclusivamente com atuação para o teatro ou para o audiovisual, sem nenhuma atividade paralela, é muito pequena. Então, nesse sentido, empreender é preciso. Quando começamos a empreender, torna-se difícil abrir mão, pois quando nos tornamos “donos” de um projeto, nosso envolvimento é completo, deixa de ser o projeto de alguém para ser nosso — um projeto que nos pertence, nos ocupa, e nos tira desse lugar de passividade, de espera.

Por que o artista tem receio de empreender? Seria medo de perder sua essência de artista?
Não… creio que se deve a uma lacuna em nossas formações. Um ator não tem aulas de finanças, produção, autoprodução. Tudo o que fiz foi seguindo minha intuição, mas esse tipo de saber deveria ser ensinado nas escolas de teatro — talvez hoje em dia até seja, na minha época é que não era. Venho de uma geração que achava que trabalhos para o audiovisual eram menores — tínhamos apenas a TV Globo como referência.

Como foi no seu início?
Quando me formei, eu queria entrar numa grande companhia de teatro e não numa emissora, que, paradoxalmente, poderia oferecer alguma garantia empregatícia. Atores de teatro sempre se produziram; investiam carros, apartamentos, pegavam empréstimos no banco, acreditavam no retorno da bilheteria. Não acho que empreender, ou se produzir, faça o ator perder sua essência de artista, ao contrário.

Você é nitidamente uma empreendedora…
Quando escolhi produzir um curta-metragem que falasse de Hildegarda von Bingen, mergulhei profundamente em minha essência de artista. Era sobre aquilo que eu queria e precisava falar, e a partir desse desejo mobilizei uma equipe de doze pessoas — e hoje estamos viajando o mundo com esse curta. Agora estou empreendendo com a Fernanda Viacava, uma peça nossa. O texto foi escrito pelo Bruno Cavalcanti para nós duas, e seremos dirigidas pela Noemi Marinho, grande referência, tanto para mim quanto para a Fernanda. É uma batalha, pois faremos sem qualquer dinheiro prévio, mas, na arte, o risco é sedutor. Uma pessoa que escolhe ser artista, em alguma medida, escolhe viver no risco e tem que lidar com isso.

“Partir para a produção das próprias ideias” é tão difícil quanto abrir uma empresa e ter uma visão 360° do projeto? Aprender a gerenciar gastos, equipe, entre outras habilidades? Em suma, para o teatro funcionar, desta forma que você vem estimulando, é interessante aprender com o próprio universo corporativo?
Olha, acredito em colaboração. Várias cabeças juntas pensam melhor que uma. Por ter estudado Comunicação Social e ter produzido muitos espetáculos, tenho o olhar de produtora. Mas sim, acho que o ator que queira se produzir tem que ter noções de gerenciamento de equipe. Um projeto no qual só um indivíduo brilha, na minha opinião, está fadado ao fracasso.

Não sou do meio, mas ouço isso com frequência de amigos do meio…
Minha busca é pensar e propor projetos que sejam abraçados e defendidos por diferentes profissionais, e que tenham suas habilidades valorizadas. Então, mesmo que não seja eu a pessoa a gerenciar os gastos, preciso confiar em parceiros que tenham essa habilidade e que gostem desse tipo de gerenciamento. Não sei se é tão difícil quanto abrir uma empresa e ter uma visão 360° do projeto, mas acho importante delegar e confiar. O projeto deve ser tão importante para mim quanto para as pessoas que escolherem se engajar nele. É menos sobre aprender com o mundo corporativo — que, em geral, visa o lucro e tem uma estrutura mais piramidal, onde poucos lucram — e mais sobre entender se há escuta e se todos os artistas e técnicos envolvidos estão tendo reconhecimento por seus trabalhos.

O termo “corporativo” pensei por minha própria experiência agora de ser escritora e ter lançado meu próprio livro, com meu selo. O trabalho diário é 97% mais “corporativo” (estoque, embalagens, etiquetas, Correios, banco, planilhas para separar lucro do que precisarei investir na reimpressão) e me vejo nesse dilema de ter que aprender algo que no fundo eu não queria — queria apenas escrever. Creio que muitos atores passam por essa angústia. Em contrapartida, quando aprendemos esses processos, o “lado artístico” fica muito mais tranquilo. Dá para perceber que o projeto está andando como um todo.
É… é um paradoxo. O ideal para a maioria dos artistas seria estar envolvido apenas com sua produção. O que percebo é que há uma desproporção. Há muito mais atores do que agentes, produtores ou captadores; assim como há muito mais escritores querendo se lançar do que editoras querendo apostar em novos talentos. É matemático mesmo. Então a forma que os artistas encontraram para “existir” é se autoproduzindo, seja na música, na literatura, no teatro, na dança. Um autor pode passar toda a sua vida escrevendo e mandando manuscritos para editoras. Ele pode sucumbir no processo, se deprimir, ou, depois de alguns anos de tentativa, ser aceito e publicado. Mas ele pode também optar pela autopublicação e acreditar no seu alcance pessoal para vender os livros. Provavelmente o resultado final do trabalho — estético e de revisão — estará mais próximo do sonho dele do que se ele tivesse sido “aceito” pela editora. Não há regras exatas, há caminhos. Ser artista é aceitar o risco.

Agora especificamente sobre teatro, também há mais espaços nas grandes cidades — pelo menos em São Paulo —, mas esses espaços não são conhecidos pelo público ou seria necessária uma, digamos, “reeducação” do público, para que ele creia, comprove, que há peças boas em outros lugares que não os teatros tradicionais?
Nicole Cordery: Estamos vivendo um bom momento para o teatro. Não acho que o público frequente apenas os teatros mais conhecidos não. Escuto falar de peças lotadas em diferentes estilos de teatro. O público fica sabendo das peças pelas redes sociais e especialmente pelo “boca a boca”. Quando uma peça é boa, a notícia corre e ela enche. Sei que espaços mais alternativos como o Teatro Garganta, o Teatro Garagem, o Cemitério de Automóveis andam tão cheios quanto os Sescs, SESI, Porto Seguro ou Teatro Vivo. Eu não vejo a hora de estar em cartaz de novo! Com Outono,Inverno, em 2023, já sentia essa presença do público.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.