Dois de Nós: pacto de suporte da solidão

Assim que saí da peça Dois de Nós – Uma comédia no espelho, falei para o meu marido: “É muito bom estar casada com você!”

Nunca assisti a uma comédia sobre casamento tão profunda e inteligente!

Cômica? Bem… Tragicômica. Porque não há casamento sem tragédia. Arrisco a dizer — entre duas pessoas minimamente sábias, ou que se amam de verdade — que é a dimensão conflituosa da vida que organiza o casamento.

Dois de Nós, em cartaz no TUCA, na PUC-SP, leva ao palco dois casais que discutem os desafios do casamento.

Na verdade, um casal.

Antônio Fagundes e Christiane Torloni dão vida à versão atual do par, enquanto Alexandra Martins e Thiago Fragoso interpretam os mesmos quando mais jovens e esperançosos nas crenças do amor.

Amor idealizado.

O conceito “família” é tão transcendental — digo, inalcançável — que na ordem cotidiana do casal se impõe jogando ainda mais luz sobre nossa solidão.

Ou jogando mais sombra.

Vamos ao enredo!

No quarto de hotel no qual se encontraram no início do casamento, Maria Helena e Pedro Paulo começam a reviver memórias das diversas fases dessa caminhada a dois que nunca tem linha de chegada.

É quando a sequência de tragédias começa a ser contada. Ainda que demos muitas risadas, é impossível não parar para refletir que casamento não é dos compromissos, digamos, mais fáceis.

Na confortável poltrona na qual me sentei, com dois dedos entrelaçados aos de meu marido, não foi uma ou duas vezes que senti que Maria Helena e Pedro Paulo falavam de nós dois.

Longe dos 30 anos de relacionamento dos personagens, nossos dois pueris anos nunca tiveram um momento de paz.

Em meio a tragédias familiares, de saúde e profissionais, em vários momentos constatamos um dizer que ouvi do escritor português Valter Hugo Mãe, que parafraseio:

“Amar é estar preparado para o momento em que o outro vai cair”.

Para além disso, é idealizar.

O primoroso texto que nos leva a grandes reflexões é de Gustavo Pinheiro. E é primoroso porque o homem Pedro Paulo revela suas fragilidades.

Já a mulher Maria Helena avança na posição de vítima costumeiramente retratada em cenas com essa temática, aquela que é traída, que é deixada por uma mais jovem.

Ambos os personagens têm camadas muito profundas. Afinal, 30 anos nesse barco em mar aberto ensinam acerca da sobrevivência.

Antônio Fagundes não encenava um texto de um brasileiro há 22 anos.

Apesar, também, de parceiros há mais de 40 anos no cinema e na televisão, Fagundes e Torloni dividem pela primeira vez o palco de um teatro.

Quem assina a direção é José Possi Neto.

O casamento é um estado de submersão, mas no qual podemos respirar. Uma espécie de útero materno, que acolhe e protege, mas cuja gestação sempre é prematura.

Ninguém está pronto. Nem depois de 30 anos.

No decorrer dos 90 minutos, uma vida inteira é repassada com muita sensibilidade e ritmicidade. Passado e presente — e nenhuma perspectiva de futuro — trazem à baila mágoas e rancores com camadas cruéis de ironia e sarcasmo.

Ironia é quando nos defendemos. Sarcasmo, quando atacamos.

Maria Helena deixa de ser “Leninha” e Pedro Paulo “Pepê”.

Quando é mesmo que passamos a deixar de lado os pequeninos gracejos que só voltam à memória numa gargalhada espontânea de uma coisa boba, trivial num dia qualquer?

Teatro é um espelho. É ter a oportunidade de nos analisar por meio da pele do outro. É aceitar a contragosto que, sim, sou como Maria Helena; e meu amor, quem sabe, tem mais de Pedro Paulo do que gostaria.

Dois de Nós é uma peça capaz de entreter, de provocar reflexões, mas também de renovar os votos não de um compromisso institucional, mas de um pacto de suporte da solidão.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.