Quando as cortinas se abrem, é quase unânime o deslumbramento diante do cenário irretocável do espetáculo A Última Sessão de Freud.
Estamos diante do gabinete do gênio austríaco que mudou a forma de pensarmos acerca de nós mesmos.
Ganhando vida através da magistral interpretação de Odilon Wagner, Freud tem como interlocutor nada mais nada menos do que C.S. Lewis, vivido por Claudio Fontana.
O escritor inglês, outro gênio, é voz ilustre da literatura, do cristianismo — e da literatura cristã.
Já o pai da psicanálise ocupa um lugar no panteão dos grandes pensadores pelas descobertas sobre o inconsciente — não sem muita suspeita, descrédito e polêmica, à época.
Mas no fim renderam-se a medicina, a filosofia e a literatura, para citar apenas três disciplinas.
E a dramaturgia, claro!
O texto de A Última Sessão de Freud é de Mark St. Germain, baseado no livro Deus em Questão, do professor de psiquiatria nova-iorquino Armand M. Nicholi Jr.
Traduzido por Clarisse Abujamra, a peça tem direção de Elias Andreato com assistência de Raphael Gama.
Toda a cena se passa em 1939, em seu gabinete na Inglaterra, onde havia se exilado.
Uma leitura de Freud, antes de tudo, deve ser histórica. É importante repassar o caminho — metodológico, por que não? — percorrido pelo pioneiro na revisão de toda a psicopatologia, pelo fundador de uma nova prática terapêutica, baseada no inconsciente, e nada disso é pouco.
Interessa aos espectadores de A Última Sessão de Freud? Saber nunca é demais e permite descer mais fundo na compreensão de tudo, principalmente, da arte que permite reproduzir e imaginar uma conversa entre esses dois gigantes.
Sigmund Freud e C.S. Lewis. Ficamos mais à vontade diante de quem conhecemos. Dois dos maiores porta-vozes do ateísmo e do cristianismo, que encontro!
O efeito contrário não é nulo, obviamente.
Depois da representação dos meninos de ouro de uma época saudosa do Pensamento — e não importa, neste caso, se cremos ou não em Deus —, é fácil sair da peça com uma vontade tremenda de conhecer a vasta obra de Freud — e de Lewis.
Principalmente, a biografia assinada por Peter Gay, o historiador com formação psicanalítica, judeu de origem alemã, tarimbado pela trajetória acadêmica fundada em suas próprias origens.
Peter Gay dedicou-se a construir estudos e biografias de personalidades da cultura europeia, publicando mais de 25 livros. Um autor que vale a pena conhecer, a despeito de Freud.
Odilon Wagner aguça a curiosidade sobre a vida familiar da lenda, suas relações mais íntimas, a cidade onde viveu e passou os últimos dias, sua formação e percalços profissionais para impor suas ideias e, claro, o contexto histórico em que estava inserido, o da Segunda Guerra Mundial.
Eu poderia ampliar meus devaneios convidando à cena que componho, Platão, Martin Heidegger e Friedrich Nietzsche, que dialogam a respeito das afinidades entre a arte e o conhecimento.
Platão via o conhecimento como superior, enquanto Friedrich Nietzsche privilegiava a arte. Contudo, como é próprio do teatro, as coisas se revelam! Saímos de A Última Sessão de Freud com sede de conhecimento — e de mais arte.
Sempre ganha quem vai ao teatro.
Se mais crenças ou menos crenças, tanto faz. Freud e Lewis debatem não apenas um com o outro, mas também com os espectadores.
Se Deus existisse… e conhecemos grande parte dos argumentos, de um lado e do outro.
Entre um argumento e outro, Sigmund Freud tosse sangue, devido ao câncer de laringe, oriundo do excesso de charutos. As cenas comovem e revelam o lado humano de ambos os pensadores, que deixam de lado suas ideias opostas ante a perspectiva da morte.
Depois de 30 cirurgias para retirar os tumores, Freud morre em 23 de setembro do mesmo ano.
A idealização do espetáculo, sucesso de público, é de Ronaldo Diaféria. O cenário é assinado por Fábio Namatame, que cuida também do figurino. Vale destacar a iluminação propícia e convidativa de Gabriel Fontes Paiva.
Ali, em privilegiado lugar, ora Freud me convencia da não existência de Deus, ora Lewis me tocava com sua fé ardorosa. Fiquei, durante todo o espetáculo, em dúvida sobre de qual lado eu estava.
Dado os dias que se passaram e as lembranças que ficaram de A Última Sessão de Freud, decido ficar do lado de Emil Cioran.
As afinidades, portanto, não são apenas entre arte e conhecimento, Deus e o Nada — o “N” em maiúsculo que roubo do romeno, para quem Deus era um tema constante, se pela crença ou descrença, quem sabe? Sabe-se, sem dúvida, que sim pela mística.
“Em mim tudo termina em oração e em blasfêmia, tudo se torna invocação e rejeição.”
“No cúmulo das minhas dúvidas, preciso de uma sombra de absoluto, um pouco de Deus.”
E a minha preferida, entre todas as suas citações sobre Deus:
“Só Deus tem o privilégio de nos abandonar. Os homens só podem nos soltar.”
Quantos gigantes para levarmos ao divã e nos ajudar no crucial autoconhecimento.