Ângela Leite Xavier: “Falaram que faço como Heródoto, misturo História com causos; uai, sim!”

Debruço-me na escrita de meu segundo romance, Valha-me Deus, que será ambientado em Ouro Preto. Contarei a história de treze mulheres, batizadas com nomes de cidades mineiras. Elas serão grandiosas! O pano de fundo é a fé, mas, paradoxalmente, as sombras iluminam. Em visita à cidade, tomo conhecimento dessa grande mulher que não é personagem: Ângela Leite Xavier. Ela é historiadora — ou contadora de histórias —, autora do envolvente Tesouros, Fantasmas e Lendas de Ouro Preto. É claro que eu faria de tudo para conversar com ela! E sobre temas sombrios: mortalidade, fantasmas, suicídio, energia, tudo o que esconde a neblina desse portal. “A beleza cala o ruído”, diz Heliodora, uma de minhas personagens. Cheguei em Ângela para aplacar meus ruídos: dar conta da dimensão que é Ouro Preto. Como ela deu.

FAUSTO — Você vive numa cidade como Ouro Preto, escreve sobre lendas, fantasmas. Como é ter consciência de sua própria mortalidade?
Ângela Leite Xavier: Até certo momento da minha vida nunca pensei na morte. Agora, que estou com 76 anos, levei um tombo e fiquei um mês de cama. Caiu a ficha de que estou ficando velha.

Isso a assusta?
Não tenho medo, tenho consciência. Porque do mesmo jeito que fiquei adolescente, no dia em que menstruei, e era uma etapa desconhecida, sei que entrei em outra fase de minha vida. Há pessoas com 60 anos que já estão nessa fase, e só agora eu estou entrando com consciência. Mas tenho muitos projetos que desejo realizar ainda, e estou quase os acelerando, porque depois que comecei a contar algumas histórias, surgiram mais que acho que vale a pena contar.

Agora você leva mais a sério o tempo, dá mais valor…
Sim, inclusive o tempo de ficar sem fazer nada. Estou por conta de fazer o que gosto, então é uma fase boa. É só o que eu quero, na hora que eu quero.

Como se descobriu uma contadora de histórias?
Sinto-me privilegiada pela época em que nasci, pois nasci numa cidade superfechada, religiosa, mas foi justamente isso que me fez questionar tudo. Daí fui confessar a um padre, falei com ele a respeito de minhas dúvidas, e ele disse para minha mãe que talvez eu tivesse vocação religiosa. [Ri] Eu estava tentando achar um caminho para ser livre e ele queria me prender, não entendeu nada! [Dá risada] Minha sorte é que vim morar em Ouro Preto novinha, em 1972. Fui cursar História em Belo Horizonte, e fiz também um curso de Artes Industriais, mas não queria ficar na sala não. Fiquei dois anos dando aula no Colégio Polivalente e recebíamos uma indenização se não quiséssemos ser efetivados no Estado. Então saí, peguei o dinheiro e fui para o Peru.

Para o Peru? Que inusitado…
Conhecidos que foram para lá depois disseram que hoje não é mais como foi no meu tempo. Cheguei a voltar lá e não é mesmo. Mas sabe quando você tem um anjo da guarda que fala “vai agora”?

Sei, muito.
Então, fiquei lá de fevereiro a novembro. Falei que ia para estudar Antropologia, estava formada em História e adorava Antropologia. Fiquei em Lima, fui para a universidade e teve greve — e eu achando fantástico, algo que nunca tinha visto no Brasil. Matriculei-me em uma escola de artes, fiquei fazendo escultura numa escola de cerâmica, aí chegou a época do Inti Raymi, uma festa inca que acontece todo ano em Cusco. Meus colegas da escola de artes diziam que eu não voltaria mais. E você acha que voltei?

Absolutamente!
Claro que não! Eu ia estudar a teoria de algo que estava vivo, que eu estava vendo? Não, eu quis ficar vivendo aquilo! Então achei que tinha que contar essa história. [Refere-se ao livro Olhos de Estrela]. Escrevi alguma coisa de lá, porque as experiências eram muito fortes; mas, depois, sentei com calma e comecei a escrever. Li sobre aquele momento histórico para poder contextualizar, e fiquei com o manuscrito até que apareceu uma lei de incentivo aqui em Ouro Preto, e publiquei.

Em sua opinião, qual é a diferença entre o contador de história e o historiador?
O historiador é muito focado na prova, de que está narrando algo real. O contador de história não quer saber se é mentira, se é verdade. Agora, eu, se eu gostei daquilo, vou contar. Não sei se a história do Vira Sahia é verdade, por exemplo, mas a história é maravilhosa e eu a conto com todos os detalhes. No meu livro eu não inventei nada, me contaram tudo. Falaram que faço como Heródoto, misturo História com causos; uai, sim! O causo faz parte da História. Se o povo que mora num determinado lugar acredita naquilo, então faz parte da história daquele povo. [Ângela pega o livro Tesouros, Fantasmas e Lendas de Ouro Preto e lê o trecho: “Grandes personagens ouro-pretanos estão imortalizados nos livros de História, outros só existem na memória oral da cidade”].

Contadores de histórias são brincalhões por natureza?
Sim. Tem que ter humor. Vai contar história uma pessoa mal-humorada, carrancuda? Não vai. A história tem magia e você tem que contar essa coisa mágica como se fosse verdade. Você acredita naquela magia, você a transmite para o outro. Isso é mágico! E nós contadores de histórias contamos só o que gostamos. Tem várias histórias de Ouro Preto que me contaram que eu não conto. Mesmo uma história trágica, para mim tem que ter uma coisa meio mágica, misteriosa, mística, porque senão não tem graça. Não adianta nada você falar que tem um fantasma, que aparece de noite, andando a cavalo, que percorre a cidade toda procurando uma chave de uma igreja, uma chave do sacrário que está perdida, e ele tem medo que alguém que não seja religioso ache essa chave, isso é muito vago.

Vago? É interessantíssimo! Mas quer dizer que vai além?
Conversei com uma senhora que morava em uma casa onde ele passava e ela me contou que nunca teve coragem de abrir a janela para ver, mas escutava o rinchar do arreio, sentia até o cheiro do suor do cavalo. E falou com os amigos dela que iam ficar de plantão para ver o fantasma. Ficaram de plantão e viram que vinha o cavalo. “Cadê ele?…Já passou”. O fantasma não fica parado na sua frente, está vindo ou já passou.

Você considera Ouro Preto uma cidade sombria?
Para mim não é, mas tem pessoas que acham. Eu acho a cidade uma beleza, antes era até mais bonita, porque tinha mais névoa. Antigamente, via-se a torre por cima do nevoeiro, era a coisa mais linda! Não tenho essa sensação de opressão, mas eu já vi muitas pessoas pirando por aqui. Tem muito caso de suicídio. Não ficamos sabendo detalhes porque ninguém comenta, mas tem.

É, ouvi falar muito a respeito disso, inclusive ser um enorme tabu, ninguém comenta.
Cada época tem um ponto de suicídio diferente. Por exemplo, antigamente, para ir à Igreja de São Francisco de Paula tinha uma ponte, chamada Ponte do Xavier, todo mundo que queria cometer suicídio pulava daquela ponte. Muitas mulheres não morriam porque a saia agarrava nas árvores e, dessa forma, eram resgatadas. Já os homens morriam todos.

O paradoxo entre a beleza e o trágico… Será que a cidade atrai um perfil específico de pessoas?
Talvez sim. Os que vêm estudar não sabem de nada, passaram no vestibular em Ouro Preto, chegam aqui e muitos não dão conta da energia. Eu vim porque achei uma maravilha!

Nós também! Tanto que estou escrevendo meu segundo romance, totalmente ficcional e ambientado em Ouro Preto. Seu livro está me servindo de base… O que você considera uma “maravilha”?
A beleza das construções, dos altos e baixos dessa paisagem… Ninguém jamais faria uma cidade num lugar desse, cheios de altos e baixos. Isso é um acaso, por causa do ouro. É uma história muito interessante. É uma cidade que sempre tem coisa para descobrir, inspiradora para todo tipo de arte. Muitos artistas moram aqui porque são inspirados por tudo isso.

Você se vê como um tesouro histórico?
Não…

Não tem o sentimento de ser também parte da história da cidade?
Acho que sim, eu já faço parte.

Mas é aquela sensação, quase um orgulho?
Sou uma pessoa bem discreta e modesta, mas fico muito feliz de pertencer, de ter feito algo sobre a cidade que as pessoas acham relevante.

Você tem ideia do seu legado?
Tenho ideia porque quando fui fazer essa edição [Aponta para o nosso exemplar], me assustei quando percebi que quase todas as pessoas que me deram depoimento já morreram.

Quando pensei nesta entrevista foi justamente por isso. Você fez algo realmente muito grandioso. Particularmente, também valorizo demais a tradição oral…

Você não é melancólica, é?
Não, de jeito nenhum. Eu sou sempre alegre, sou uma pessoa feliz por dentro, gosto de cantar, de dançar, de conhecer lugares diferentes.

Você acredita nesses famosos fantasmas de Ouro Preto?
As pessoas me perguntam: “Você não tem medo, nunca apareceu nada pra você?”. Gente, eu sei onde aparece assombrações, e eu não vou lá à noite não! O interessante é que quem mais vê mulher de branco ou mulher de preto andando pela rua de madrugada é homem solteirão, mais velho. Não tem nenhuma mulher que me contou um fato desse e nenhum jovem, só homens velhos solteirões.

Você já viu?
Nada. Nunca vi. Logo que mudei para cá, eu e uma amiga, de tardinha, fomos lá para cima na escadaria da Igreja de São Francisco de Paula. Ficamos ali, quietinhas, nós duas, vendo a cidade lá embaixo e comentando sobre as novidades, quando, de repente, escutamos um barulho na igreja. “Você ouviu isso?”, eu disse, e minha amiga respondeu que sim. Saímos correndo, não tinha ninguém lá e já estava escurecendo. Isso foi o máximo que aconteceu comigo. Agora, eu sei exatamente onde estão as assombrações, jamais vou ao cemitério à noite.

Então você crê que há fantasmas?
Acho que tem uma energia, não sei o que é, mas muitas pessoas veem e sentem. Uma casa que me cortou o coração quando caiu é a casa do Vira Sahia, um personagem real. Adoro esse personagem. Aqui, tinha vários oratórios de esquina, porque tem uma crença de que quando há um caminho que se divide em três, ali é perigoso; então se põe um oratório, e ele fez um lá na casa dele também, que fica exatamente numa encruzilhada de três caminhos, isso com a imagem de nossa senhora das almas. E contam que ele tinha uma quadrilha que assaltava o quinto do ouro, não assaltava ninguém, só o comboio do quinto. Ele juntava a turma dele, na madrugada, e para ninguém desconfiar eles faziam assombração, todo mundo tinha medo, era tudo escuro, então punha uns lençóis e assustavam para ninguém desconfiar.

Tem receio de que as novas gerações não saibam valorizar o legado histórico de uma cidade como Ouro Preto?
Acho que não, porque todo mundo adora ter uma coisa dessa como história viva. Você não sai na rua impunemente aqui não. Eu saio com meu celular e os guias ficam me oferecendo hotel porque acham que eu sou turista, pois se vejo algo por um ângulo que eu nunca tinha visto, bato foto. Acho que com o tempo vamos considerar até mais precioso.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.