Armando Babaioff: “Tom na Fazenda é um pacto líquido: água, sangue, urina, esperma”

Quanto mais o tempo passa — e mais espetáculos teatrais assisto —, Tom na Fazenda finca raízes em minha memória como obra de arte. Memória é um constante exercício da imaginação e o teatro é um lugar de afinação desse poder que, no dia a dia, influencia a maneira que pensamos o mundo, as relações e, sobretudo, nós mesmos. À frente da montagem arrebatadora, que já viajou diversos países, Armando Babaioff é a voz apropriada porque não só engoliu o texto como o regurgitou. Como tradutor do original em francês, esse detalhe é destacável porque comprova a razão de a peça literalmente visceral que encena não ser mero entretenimento, pois nos traz para a nossa realidade: é uma presença que encarna.

Armando Babaioff
Armando Babaioff.

FAUSTO — Tom na Fazenda é o triunfo da compreensão da linguagem acerca do que é demasiadamente humano? Entenda por complexo, sujo, dúbio, paradoxal. Triunfo sobre a higienização de como devemos falar, de conceitos modernos; porque a peça é de uma profundidade e elegância infinitas, sem nenhuma palavra da moda, já esgarçada. Ou nada disso passou pela sua mente?
Armando Babaioff: Passou, porque se relaciona com questões minhas. Tom na Fazenda é uma adaptação. Quando fiz a tradução, já foi pensando na maneira como eu me relaciono com a vida e o mundo.

Qual foi o impacto quando leu o texto pela primeira vez?
Eu já estava planejando produzir o espetáculo quando li o texto pela primeira vez. Então, minha primeira preocupação foi que eu tinha que trazê-lo para a nossa realidade. Eu assistia ao que estava sendo produzido no Brasil e essas montagens me afastavam, pois tratavam de realidades distantes. Porque tem isso: quando o texto é estrangeiro, primeiro devemos engoli-lo, regurgitá-lo; e não simplesmente montá-lo da forma como foi originalmente criado. Em Tom na Fazenda existe um conceito que o próprio texto indica e que foi esgarçado pelo Rodrigo Portella — e precisamos falar sobre o Rodrigo Portella, porque foi ele que organizou todas as ideias.

Qual é a importância do Rodrigo Portella no sucesso de Tom na Fazenda?
Ele não se autointitula diretor, mas organizador de ideias. O Rodrigo Portella e eu nos conhecemos bastante. Logo, quando pensei nesse projeto, já tínhamos um vínculo, uma relação de décadas de palco.

E como foi o processo de tradução?
Logo de cara, retiro todas as referências geográficas, climáticas, econômicas e sociais daquela comunidade. Ponto. Não quero falar deles. Quando eu estava no processo de tradução, o autor me escreveu perguntando se eu estava traduzindo do francês ou do inglês, e me falou que preferia que eu traduzisse do francês. Não sou bobo, claro, percebi a oportunidade de olhar para as duas versões que são completamente diferentes.

Há muitas diferenças?
O inglês americano vai direto ao ponto; já o francês, tem algo muito parecido com o português, até porque a raiz é a mesma. As metáforas, os sinônimos, o próprio modo de falar e pensar é semelhante, embora haja, ali, o pensamento eurocêntrico. Então, tive que engolir o texto e regurgitá-lo. Essa foi a maneira que encontrei não de abrasileirar a peça, porque a tornaria reducionista, mas de trazer o texto para a nossa realidade.

O que mantinha em mente, quase como um mantra, durante o processo de tradução?
Apresentar uma família que eu conhecesse. Logo, não pensei duas vezes: evoquei minha mãe. Minha mãe é a [personagem] Ágata inteirinha. Maneira de falar, métrica do texto. Nesse aspecto, tomei a liberdade de fazer alguns cortes e de realocar trechos. Li o texto em voz alta para entender se funcionava em minha embocadura; ou seja, conheço esse texto de cor e salteado, de trás para a frente, porque me apropriei dos personagens para trazê-los para o nosso contexto. A sala de ensaio contribuiu para a escrita, que considero o arremate. “Forro de madeira, duas águas, janela, piso de lajotas vermelhas”, as primeiras falas da peça não fazem parte do texto do Michel Marc Bouchard, é um caco que nasceu na sala de ensaio. Foi o Rodrigo me inquirindo acerca da descrição da fazenda que ele dizia não conseguir enxergar.

De onde tirou as referências?
Descrevi a sala de ensaio onde estávamos, que, por acaso, era a sala de ensaio da casa da Camila [Nhary], que faz a peça. Portanto, descrevi algo concreto e que, de repente, bum!, se expandiu e entrou no texto. O teatro que temos visto hoje no Brasil, de alguma maneira, tem usado recursos amplamente explorados no teatro europeu.

Quais recursos seriam esses? E não gosta deles?
São microfones, projeções, elementos que ajudam a contar a história. Em algumas peças funcionam; em outras, acabam virando recurso estilístico ou decorativo. É bonito, plástico, mas não é o teatro que eu gosto de fazer. Prefiro quando, de repente, estou ali em cena e sem recurso nenhum “faz-se teatro”. O texto original de Tom na Fazenda tem todos os cenários, mas fazer sem o cenário, amplifica a fala, porque retira qualquer suporte. Não há nada entre os personagens, ou seja, tudo pode acontecer. O risco é iminente.

E tem a plateia, que paralisa.
A plateia, num primeiro momento, é convocada de maneira ativa a pensar o cenário junto com o personagem, a entender como funciona sua mente, para onde está indo a narração, se é para o morto, se é para o celular, se é para ele mesmo ou para a plateia; ela participa de maneira ativa como uma espécie de voyeur. A plateia pensa: “Espere aí, estou ou não dentro disso?”

Faz total sentido, senti-me assim, com uma sensação de prisão.
Então, é confuso, mas ajuda o texto a ficar em primeiro plano. Penso nessa primeira pergunta, da compreensão da linguagem versus higienização da linguagem, que a peça se propõe a ser teatro. Ela tem uma história muito sólida, com personagens sólidos, e com uma profusão de pensamentos e de camadas. O buraco é muito mais embaixo.

Concorda que poderia ter feito isso? Ter deixado tudo mais claro com palavras “lacradoras”. Porque o texto é muito rico, e por isso leva a plateia mais rápido para a alteridade… Isso é transcendental!
Uma pessoa na França, em Avignon, parou-me na rua, reconheceu-me porque tinha assistido à peça, e falou-me: “Vocês podem matar uma pessoa com essa peça.”

Caramba!
Isso é pela força, pela urgência, pela maneira como o texto atravessa cada um.

Faz sentido, mas creio que está mais para salvar do que para matar…
Sim, mas estamos falando de uma pessoa de outro país, outra cultura. É um problema real do Brasil o fato de sermos o país que mais mata a comunidade LGBTQIA+. Não levamos a sério como deveríamos levar. Tom na Fazenda só é violenta, dessa maneira, porque a palavra, aqui, perdeu a força. Chamar alguém de “viado” lá fora já basta.

Conversando pessoalmente com você fica fácil perceber que tem sua forma de lidar com o mundo; ou seja, você é uma pessoa que se preocupa com a linguagem…
Foi uma oportunidade que tive de brincar e de exercer algo que eu estava fazendo pela primeira vez: traduzir uma peça. Minha ambição como tradutor era para que o Portella entendesse o texto, porque ele não lê em inglês. Traduzi para o meu amigo. Essa foi a minha ambição. Só que, quando comecei esse exercício, brinquei também de ser autor, porque você está ali escolhendo as palavras.

“Ser um pequeno deus, criador de um pequeno mundo” é uma frase de um crítico literário argentino que eu gosto muito, o Alberto Manguel…
Achei muito divertido esse lugar de liberdade, de criação, de conhecer os sinônimos. Quais são os lugares que eu quero evocar nas pessoas? Quais lugares quero atingir? A maneira que encontrei de ser um atuante político foi mantendo essa peça em cartaz durante sete anos.

E a peça foi mudando na medida em que os acontecimentos foram se desenrolando, sobretudo no Brasil?
Apresentar essa peça em Montreal, por exemplo, ajudou-me a entender muita coisa. Hoje, é possível ter um entendimento profundo acerca de Tom na Fazenda; mas há quatro anos, não. É como se a peça fosse uma esponja que absorvesse as questões que estão urgindo na sociedade, mas sem a consciência de que estamos fazendo isso.

Quando falo lacração, quero dizer que a lacração interrompe o diálogo. Considero um triunfo justamente porque não tem essa interrupção…
Mérito do Rodrigo Portella. Ele decidiu não responder às perguntas. Nenhuma. Deixamos tudo em aberto. Não dá para saber se a mãe ouviu a conversa, se ela sabia de tudo, se o irmão é homofóbico ou gay enrustido. Tudo que conseguimos deixar em aberto, deixamos; para uma leitura individual de cada um, porque é sobre a história de cada um. A plateia é responsável pela peça, inclusive porque tem dias que a plateia está rindo, rindo, rindo; óbvio que são risos de nervoso, risos descolados da realidade, mas também há risos de pessoas que compactuam com algumas coisas que são ditas.

Tom na Fazenda é uma obra-prima, porque você consegue passar toda essa mensagem com uma linguagem muito elevada. Estou absurdamente redundante…
Fazemos o que fazemos porque acreditamos demasiadamente em cada palavra do que é dito em cena. É quase como se tivéssemos um propósito muito grande para entrar em cena e viver toda aquela violência, toda noite. Saímos destruídos.

A beleza pode estimular e potencializar a alteridade? Refiro-me, especificamente, à cena do duelo, que é uma dança, um duelo extremamente virtuoso. Por alteridade quero dizer a capacidade de eu vê-lo como alguém diferente de mim, mas sem o julgar e sem fazer nenhuma comparação…
Armando Babaioff: Creio que a representação dessa alteridade esteja na presença da lama. Os personagens se colocam no mesmo lugar a partir do momento em que a lama — que é cenário — sobe em seus corpos. O que era cenário, de repente, passa a vesti-los. A lama fica impregnada nos cabelos. Em seguida, na cena da dança, apesar daquela plasticidade toda, ela acontece no momento em que a lama é espalhada no palco, é a cena que uniformiza tudo. Simbolicamente, os dois estão virando uma coisa só, os dois ficam com o mesmo tom de pele. A partir dessa cena da dança, mais precisamente da cena do parto do bezerro, aquela placenta, todo esse líquido acaba ajudando a dissolver as diferenças. As cores tornam-se as mesmas. E quando os dois estão deitados no chão, pós-enforcamento, é quase como se eles se tornassem um só.

É um absurdo de lindo!
Então, sim, acredito que, simbolicamente, esse é um momento muito específico, de uma cisão. Tom na Fazenda é um pacto líquido: água, sangue, urina, esperma, líquido amniótico e leite.

Isso de nos sentirmos numa prisão tem a ver, paradoxalmente, com a beleza, porque diante de uma obra de arte, é difícil tomar uma decisão, eu acho. E obra de arte no teatro nos obriga a ficar na cadeira, presos, e tudo o que vemos reverbera por semanas, não sei explicar esse fenômeno.
Plateia e palco são uma coisa só. Imagine fazer essa peça num teatro que foi o Poeirinha, para 47 pessoas, no qual o público entrava num corredorzinho entre duas arquibancadas, a porta fechava, era uma caixa preta, não tinha por onde sair. Desde então, vivemos essa experiência de confinar o público e de o público participar de toda a história. “Vocês vão viver essa tortura junto comigo.”

Veja, eu vivo da escrita, meus canais ficam abertos o tempo todo e para mim foi como se eu fosse a única testemunha do que estava acontecendo com o Tom… É um triunfo da linguagem, não consigo pensar noutra maneira de definir a peça…
Existe uma confluência de acertos nas linguagens artísticas que se somam de maneira assertiva. Trilha sonora, iluminação, coreografia, os corpos, o texto. No processo criativo, todo mundo participou de tudo, desde o início. Discutimos a peça até hoje.

Existe uma forma de ser egoísta sem magoar alguém?
Armando Babaioff: Sim, o egoísmo é fundamental para a motivação de alguma coisa, mas tem que ser usado de maneira inteligente, e não parva.

Existe uma forma de ser altruísta sem magoar a si mesmo?
Boa pergunta. Boa pergunta. Perder a coerência é a pior coisa. Porque você tem um pensamento, um raciocínio, defende algo, acredita em alguma coisa. Até não ter fé em nada é ter fé em alguma coisa, então tem que ter esse cuidado com a coerência.

Você acredita que Tom na Fazenda é uma obra de arte?
Acredito. Não só ela, como o teatro em si.

Sem falsa modéstia.
Demorei muito para dizer que eu era ator. Muito. Faço teatro desde os onze anos.

Como começou?
Comecei numa escola pública. Minha mãe é costureira; meu pai, aposentado, ele foi vendedor de peças de automóvel. Ser ator foi a maneira que encontrei de ser quem eu gostaria de ser, para falar das coisas que eu gostaria de falar. Encontrei no teatro a minha igreja, a minha fé. Contei para minha mãe que eu queria ser ator e ela disse que não poderia me ajudar, nem meu pai. Ali entendi que existia um desafio e dei cabo dele. Desde muito jovem sou consciente não de uma trajetória abrupta que eu deveria traçar para conseguir alguma coisa, não se trata disso, mas eu sabia que seria um processo. Eu sabia que para conquistar algumas coisas, dentro da minha realidade, teria que olhar para o que estava acontecendo comigo e entender de que forma eu poderia pegar essas “pedras” para pavimentar o trajeto que eu gostaria de seguir — e quero seguir! Sempre quis ser ator de teatro. Quando fiz Martins Pena, eu falava que era estudante de teatro. Quando entrei para a faculdade, eu falava que era estudante de teatro. Ao preencher qualquer formulário, colocava “estudante de teatro”.

E por quê?
Sentia-me defendendo o título de alguém que estudava alguma coisa — e não o título de alguém que já era alguma coisa. Porque não me sinto coisa alguma nessa posição. Estou construindo esse caminho, esse trajeto, desse artista que quero ser. As pessoas estão me conhecendo agora no teatro, é minha terceira produção, mas é a minha peça deste momento. Não vou fazer Tom na Fazenda por toda a minha vida. O que já estou planejando? Sobre o que quero falar? É um outro Armando.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.