De cultura pop ao feminismo – campo no qual se consolidou como pensadora férrea – Camille Paglia não poupa nomes e nem a ala conservadora dos temas sobre os quais opina. Suas ideias costumam suscitar divergências pelo caráter detrator de como as expõe e tamanho repertório cultural permite que se lance em entrevistas e artigos sobre os mais variados temas. Em Imagens Cintilantes, elegante coletânea lançada no Brasil pela Apicuri, a filósofa e ensaísta americana reúne artigos sobre arte egípcia, grega, medieval, renascentista e, claro, arte pop.
Ao longo dos anos, Camille Paglia discorreu sobre sexo, fetichismo, homossexualidade, as incongruências do feminismo, o direito à liberdade individual, entre tantos outros assuntos. Mesmo muitas vezes com aparente contradição – como quando assume o ateísmo, por exemplo – não deixa de reconhecer a importância da religião na formação do indivíduo, não só pelos valores éticos como pelas referências que dão sentido à existência. Segundo Paglia, os contextos político, social e religioso de uma época influenciam a arte. Uma vez que a arte reflete o estilo de vida de uma sociedade ou época, faz sentido a reflexão:
“Embora eu seja ateia, respeito todas as religiões e as levo a sério como vastos sistemas simbólicos que contém verdades profundas acerca da existência humana. Algumas vezes o mal foi feito em seu nome, mas apesar disso a religião tem sido uma enorme força civilizadora na história do mundo.”
A autora de Personas Sexuais, de 1990, livro de estreia que a apresentou como crítica visceral, publicou ainda Vamps & Tramps: Novos Ensaios, em 1994, Os Pássaros, de 1998, e Sexo, Arte e Cultura Americana, de 1992. Em Imagens Cintilantes, Camille Paglia mostra claramente o desejo de exaltar a Arte novamente.
Primeiro, na mídia:
“A arte hoje só vai parar nas manchetes quando um quadro é roubado ou leiloado por um preço recorde.”
Segundo, nas escolas:
“É de uma obviedade alarmante que as escolas públicas norte-americanas têm feito um mau serviço na educação artística dos estudantes. Da pré-escola em diante, a arte é tratada como uma prática terapêutica – projetos com cartolina do tipo “faça você mesmo” e pinturas com os dedos para liberar a criatividade oculta das crianças. Mas o que de fato faz falta é um quadro histórico de conhecimentos objetivos acerca da arte.”
Imagens Cintilantes apresenta 29 artigos que analisam obras como a egípcia Rainha Nefertari e a deusa Ísis, localizada no túmulo de Nefertari; a escultura grega O Auriga de Delfos; passando por peças de Donatello, Ticiano, Bernini, Antony Van Dyck, Manet, Monet, Picasso, Mondrian, Pollock, Andy Warhol, Renée Cox, chegando a George Lucas: “um épico cineasta que transformou as deslumbrantes novas tecnologias num gênero pessoal expressivo.”, o define Paglia.
Eis mais um trecho:
“Ninguém reduziu a distância que separava a arte da tecnologia com maior êxito do que George Lucas. Em sua saga de seis filmes, Star Wars, que marcou época, ele fundiu as antigas lendas heroicas do Oriente e do Ocidente com a ficção cientifica futurista e criou personagens que entraram no sonho de milhões de pessoas. (…) Lucas foi um visionário digital que profetizou e ajudou a moldar um sem número de avanços, como as imagens computadorizadas, a edição de filmes, a mixagem dos sons e o desenho virtual dos cenários por computador.”
A importância de Camille Paglia no universo intelectual caracterizou-se também pela quebra de paradigmas em uma relação tenuíssima entre vida pública e privada. Paglia é uma acadêmica assumidamente homossexual, cujas ideias foram constantemente desprovidas de conservadorismo. Ainda que Personas Sexuais tenha dado à ensaísta significativa projeção, foi com Sexo, Arte e Cultura Americana que Paglia assentou-se entre os preeminentes pensadores populares contemporâneos.
Esses extremos sobre os quais dialoga com naturalidade parecem ter vindo de uma infância livre. A família de Camille Paglia, embora com pouco poder aquisitivo, valorizava o acesso à cultura – e a todo tipo de cultura.
Do erudito ao popular, o gosto da escritora foi constituído pela apreciação de obras muito distintas: das óperas de George Bizet – compositor francês do século XIX – aos filmes de Walt Disney. Grandes personalidades do cinema, mulheres ícones de beleza como Katharine Hepburn e Elizabeth Taylor também figuram a lista.
De Taylor, por exemplo, Paglia chegou a colecionar obsessivamente fotos e recortes de revista. Outra influência a considerar, que neste caso aponta mais para a veia intelectual que apenas anos mais tarde se revelaria, aos 14 anos Camille se apaixonou por Amelia Earhart, pioneira na aviação dos Estados Unidos e que acabou se tornando uma defensora dos direitos da mulher. À Amelia Earhart, Paglia dedicou três anos de acurada pesquisa e chegou a considerar transformá-la em um livro, abandonando, contudo, a ideia.
O peso de ser uma homossexual assumida nos anos de faculdade contribuiu na maneira como conduziu sua carreira. Alvo de preconceito quando ainda era aluna em Yale, Paglia chegou a ser insultada por um professor por sua orientação sexual. O episódio aconteceu em uma festa, na casa de um de seus professores, e a impactou a ponto de levá-la à decisão de se tornar uma influência preponderante de oposição às estruturas culturais e morais da época, mergulhando nos estudos como forma de combater as raízes do preconceito e tornando-se a porta-voz em que se converteu no futuro. Camille Paglia foi a única estudante assumidamente gay nos quatro anos em que passou em Yale.
Seu apreço pela arte tem há décadas oferecido ao público textos entusiasmados, de leitura agradável para o leitor comum – no caso, o não acadêmico. Um dos diferenciais da filósofa é justamente a maneira como torna acessível o conhecimento. Possivelmente, como conta em Imagens Cintilantes, deve vir de um costume desde sempre em sua vida de ouvir FMs e AMs de rádio, programas populares nos quais o público também tem voz e a troca é constante. Ótimo para quem ama arte e deseja se aprofundar mais, de um jeito mais amigável. Eis Imagens Cintilantes.
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