A verdade é que: dificilmente você chegará ao fim desta entrevista tendo lido exatamente o que está escrito. Ante de uma possível incapacidade de interpretar texto, está, infelizmente, a tão urgente necessidade de escutar o outro. Christian Dunker, psicanalista pós-doutor pela Manchester Metropolitan University, conversa com a FAUSTO com exclusividade sobre, talvez, o maior mal de nosso tempo. Professor Livre Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, autor do recém lançado Reinvenção da Intimidade – Políticas do Sofrimento Cotidiano, Dunker convida para sairmos de nós mesmos. Mas será mesmo possível? Imperdível!
FAUSTO – O que há por trás da dificuldade de escutar o outro?
Christian Dunker: Muitas dificuldades, de várias naturezas. Citarei três. Podemos partir do ponto de que escutar o outro é despir-se de nós mesmos, é largar a obsessão com nossa identidade, suspender quem somos e quem é o outro. É claro que quando fazemos isso, podemos escutar desse outro coisas que não admitimos em nós. Ângulos que não conseguimos ver, perspectivas que queremos evitar, lembranças que a fala do outro evocam. Ou seja, para escutar o outro é preciso sair de nós mesmos, sair de “si”. Esse “si” é tanto nosso material mais precioso quanto nossas defesas. É tudo aquilo que nos ensurdece.
E o segundo?
Colocar-se no ponto de vista do outro nos termos do outro. Muitas vezes, quando entendemos alguém é porque substituímos esse alguém por nós mesmos. Agora, isso é trabalho para uma vida. Quanto mais você é capaz de amar alguém, mais consegue entrar em seu universo, e nos próprios termos dessa pessoa.
E o terceiro?
Depois de conseguir sair de si e falar a linguagem do outro, é importante ir para um terceiro lugar. A verdade não está nem aqui nem ali. A verdade existe independente de nós e não importa quem de nós está com a razão. Ou seja, são três etapas: sair de si, compreender o outro e ir para um terceiro lugar. É assim que conseguimos, de fato, escutar – o que está para além de mim e para além de você.
Isso dá muito trabalho!
Dá, mas é o que torna a vida divertida. Andando Brasil afora, a principal atividade – além do trabalho – são conversas entre pessoas. Passe numa cidade, grande ou pequena, e o que as pessoas estão fazendo? Se não estão fazendo sexo – que é pouco e rápido – ou cuidando da manutenção da vida, o que sobra é a palavra.
Agora, vou transformar uma frase sua, que acho sensacional, numa pergunta. Só consigo escutar se suporto a incerteza?
Sim. E incerteza em vários níveis. Mas a incerteza mais produtiva, nesse contexto, é: para onde vamos? Estamos numa conversa agora, você e eu: para onde nos levará? Há pessoas que só conseguem conversar se souberem que vai resultar numa entrevista bem feita. Ou em um “comprei”. Ou em um “vendi”. Se aprofundarmos mais, falaremos da incerteza do caminho. Aliás, sedução quer dizer isso: tirar do caminho. Uma conversa interessante é aquela que o tira do caminho. Arte basicamente é isso também. É o que o leva para o acostamento, para o intervalo, para outro destino que não se sabe qual é. Em geral, as pessoas temem isso, elas não querem. Outro nível ainda mais profundo é: pelas conversas criamos o que é tão importante, a liberdade. Se não sou capaz de renunciar certezas, estou renunciando minha liberdade também.
Essa sua frase me chamou a atenção, e na entrevista com o Ricardo Rangel de alguma forma abordei isso. Certezas dizem quem somos. Então, para uma pessoa ter de abrir mão delas, é quase como perder a identidade…
Peguemos os grandes romances: Anna Kariênina, por exemplo. Ou o de Stendhal ou Goethe. Na verdade, desde Hamlet, estamos cheios de histórias de pessoas que descobriram que suas crenças eram ilusões. E aí vão descobrindo outras crenças, e depois outras, depois outras. São protótipos do que podemos chamar de subjetividade interessante. Queremos, de alguma forma, ser como eles: Anna Kariênina, apesar do sofrimento; Bentinho; Brás Cubas.
Qual deve ser o lugar da vaidade em um diálogo?
Vaidade tem dois nomes na modernidade: amor de si e amor por si. Se juntarmos as duas ideias no mesmo termo, perderemos algo muito importante. Primeiro, o sentimento de que amamos a nós mesmos, nossa imagem, nossa posição social. Amamos aquilo que vemos no olhar do outro, e porque essa imagem nos mostra uma espécie de incompletude, ela também nos mostra que podemos ser outro. Agora, a vaidade também pode mostrar apenas uma imagem, e é preciso cuidar disso. Ou seja, a vaidade maléfica, improdutiva, nos superficializa e superficializa nossas relações.
No debate público, quem pensa diferente de mim é meu inimigo?
Obviamente, não. Mas voltamos ao que já falamos. Se não é meu inimigo, como chamá-lo?
Pois é… Como?
Do inimigo, em geral, já sei tudo. Ele falará aquela coisa odiosa, que não suporto. O inimigo se define como aquele que não suporto escutar. Os bárbaros, para os gregos. O inimigo é, antes de tudo, aquele que creio que se eu conseguisse tirar do mundo, o mundo ficaria melhor. Porque, no fundo, ele é depositário das minhas insatisfações, frustrações, limitações. E mais! Pressuponho que o que ele quer é acabar comigo, porque é o que eu quero.
Como isso se resolve?
Por outros meios que não é a palavra. Inimigo não é feito para falarmos com ele, ele é feito para a guerra.
Então, temos que dar outro nome?
Sim, tratá-lo como adversário. Ou seja, tenho que mudar de posição. Enquanto o trato como inimigo, vou confirmar para mim, como espelho, que ele é inimigo. Aí começa a acontecer o que os psicólogos chamam de “profecia autorrealizadora”. Trato meu inimigo como imbecil, trato mal, como ele me responde? Mal! “Está vendo como ele é aquilo que antecipei?” A arte de tirar o inimigo de seu lugar de inimigo e levá-lo ao lugar de adversário, acontece quando reconhecemos que existe um inimigo interno.
Touché!
Os verdadeiros inimigos estão dentro de mim. Quem tem inimigos fora, no fundo é um tolo, não percebe que inimigos são sempre [Dá muita ênfase] internos. Como você não consegue conviver com eles, os coloca para fora, além das fronteiras, coloca no outro. Ou seja, você cria inimigos; o que torna sua vida chata, perturbada. Ou então – o inimigo dá sentido para sua vida quando ela não tem mais sentido.
Forte isso…
Acontece quando a vida da pessoa vira um deserto, se torna irrelevante, e ela se sente mais uma na multidão. A pessoa que vive assim renunciou aos próprios desejos. A tentação então é pensar que existe um sentido maior, que não é procurar a felicidade dela, mas diminuir a infelicidade acabando com o mal. Então, ela se dedica a brigar.
Há mais coisas por trás desse impulso de querer brigar?
Brigar com alguém é criar sentido, criar horizonte, criar algo. A pessoa que não consegue criar nada, cria inimigos. A função da Cultura, das Artes, de tudo aquilo que não tenha relação com produção ou consumo, é justamente ensinar as pessoas, ajudá-las a criar. Se elas não criam de um jeito, vão criar de outro. A lógica do inimigo responde a isso.
Dá para ver isso bem nas redes sociais…
Quando você está com aquele que o contraria, que não pensa como você, que tem ideias com as quais você jamais vai compactuar, pensar que vocês estão numa espécie de jogo, ajuda. Jogo é um modelo de criação.
E no que consiste esse jogo?
Às vezes, você vai perder, noutras vai ganhar. Mas, no fundo, não tem de fato o melhor. Quem é o melhor: Palmeira ou Corinthians? Nesse campeonato é um, noutro campeonato será outro. Veja, isso sugere o seguinte: para transformar o inimigo em adversário, é preciso a realização do tempo.
Como assim?
Tempo curto. O tempo longo significa estar junto e aí… Se você não consegue realizar algo com essa pessoa, não será você ou a pessoa que vai perder, mas seus filhos. É o mundo que deixaremos, o futuro que está além de nós. Essa ideia de sair de si e pensar que não é uma batalha a dois, que é uma batalha que prescreve o futuro, cria uma segunda necessidade muito importante: a História.
Eis uma verdade…
Podemos não ter estado do mesmo lado, mas a História que nos precedeu é comum. Viemos de lá e vamos para outro lugar. Esse senso mais alargado de tempo, esse senso que, infelizmente, a vida digital está apagando, porque praticamente vivemos sem memória, está dificultando as coisas. Mas, no futuro, o efeito será exatamente o contrário!
A arma se virará contra nós?
Daqui a 15 anos, quando procurarmos emprego, o empregador vai abrir a página do nosso Facebook e vai ver as bobagens que falamos para nosso vizinho. No futuro, essas tolices estarão presas em nossa história. E somos capazes de dizer e fazer coisas horríveis! Portanto, transformar o inimigo em outra coisa é um ato de generosidade. Se não somos capazes de um mínimo de generosidade, teremos muitos inimigos – e para o resto de sua vida.
É possível aprender a ser generoso?
Sim. Tenha um filho. [Dá risada] Ou se apaixone. Você começará a agir de forma “estranha”.
É possível admirar e respeitar o adversário?
Sim! Respeito e admiração têm a ver com distância. Isso é um dos pontos interessantes no inimigo. Em geral, ele está distante. É possível enxergá-lo de várias posições. Um dos ditados bíblicos mais simples e fulminantes é: conheça o seu inimigo. “Ah, meus inimigos quero longe!” Não. Voltamos a Plutarco: coloque seus inimigos ao alcance de sua visão, saiba o que eles estão fazendo. Achamos que temos que escolher nossos amigos, mas temos que escolher nossos inimigos também.
E até para isso é preciso saber escutar…
Sim. E se escolher. Não deixar que os outros, as circunstâncias, as ideologias atrapalhem. Uma vida consagrada a um inimigo é uma vida pobre. Só que uma vida sem inimigos também não é possível.
Venho reparando que os debates, em geral, quase sempre só têm convidados “do mesmo lado”. Ou seja, não há, de fato, debate. Se for político, por exemplo, só tem pensadores de esquerda ou só de direita. Feminismo é outro tema que quase sempre é debatido por pessoas que pensam da mesma forma. Isso é gravíssimo, não?
Gravíssimo. Por que me meto em tantas encrencas? É uma decisão de método. Psicanalista vive do quê? Escutar os outros. Os limites da escuta é o que se consegue escutar. O que o psicanalista ambiciona? Figuras difíceis. E como fazer isso? Tenho que me mudar para o condomínio onde está a pior espécie com quem eu possa ter uma conversa. Com essas pessoas, aprendemos os limites de minha própria escuta. Assim é que é possível, como diz minha amiga Márcia Tiburi, conversar com um fascista. O Sakamoto segue a mesma linha: o que aprendo sendo xingado na internet. São pontos de vista que dizem que precisamos qualificar a inimizade.
E o que seria qualificar a inimizade?
O respeito e a admiração vão produzindo efeitos de autoridade sobre você. Hoje, o que está acontecendo é péssimo. A primeira coisa que fazemos é dizer que nosso interlocutor não tem autoridade. Aí ele vem “pra cima” e mostra que em vez de autoridade, ele tem poder de fogo e violência. Conceber que seu inimigo possui autoridade é transformá-lo de inimigo para adversário. Porque ele tem algo que, em alguma medida, eu respeito.
Há muita inveja no meio de tudo isso?
Hoje, o afeto reprimido, o culto das inimizades é inveja. Inveja galopante, inveja mal tratada. A pessoa queria ser professor, mete pau no professor; queria ter muito dinheiro, mete pau em quem tem muito dinheiro. A inveja é o alimento da inimizade.
Outra frase sua que gostei muito: “escutar o outro é renunciar sua posição de poder”. Agora, honestamente, por qual razão eu renunciaria minha posição de poder?
Ótima pergunta! Ótima pergunta. Os melhores motivos são os piores. Por exemplo, renuncio por medo de outra pessoa mais poderosa do que eu. Pode ser também porque não considero um bom negócio, serei invejado ou começarei a perder coisas. O ciumento é esse tipo. Ele acha que tem mais poder do que de fato tem. Então, renunciar ao poder é renunciar a uma ilusão de poder. É um grande motivo para fazer uma “dieta de poder”. Outro motivo, contudo, mais interessante – e para poucos – é descobrir que a renúncia do poder produz o efeito de desejar outras coisas.