Atividades anteriormente comuns, como ouvir uma boa música ou ler um bom livro, vêm se tornando cada vez mais restritas devido à falta de tempo. Se, por um lado, a sociedade vê o mundo através de uma tela que entrega informações instantâneas, por outro, a vida interior vai perdendo o vigor por falta de nutrimento da alma. A contemporaneidade está entorpecida pelo excesso de estímulos dos mais variados, o que acarreta em diversas doenças psíquicas. Nossa entrevistada, Elisabeth Camargo, acredita no poder curativo da arte. Musicoterapeuta especializada em cognição e arte educadora, conversou com a FAUSTO sobre temas que afligem o espírito humano.
FAUSTO — Como prestar atenção em um mundo cheio de ruídos?
Elisabeth Camargo: Grande questão. Como determinar o que é importante na vida? Temos tantos ruídos hoje em dia e está todo mundo pedindo atenção em todos os momentos. Tudo vem muito fragmentado. Então, se não desenvolvemos uma inteligência crítica para lidar com as coisas que chegam até nós, fica muito difícil, porque ficamos à mercê de muitos ruídos. Uma das minhas lutas dentro da música e da cognição é exatamente trabalhar com integração sonora para melhorarmos nosso cérebro para a receptividade, para receber e processar as informações. É um trabalho educativo para a vida toda.
A inteligência artificial é um caminho sem volta, certo? Você a considera mais uma aliada ou vilã no que diz respeito à nossa capacidade de usar o nosso cérebro de maneira mais saudável?
Acredito que tudo, sem exceção, tem um lado bom e um lado ruim. Considero bom e ruim dependendo de quem usa. É um caminho sem volta, com certeza, faz parte da nossa evolução. Chegamos num patamar de conhecimento que permitiu que isso acontecesse e estivesse plenamente espalhado. A questão é como utilizamos essa ferramenta. Por exemplo, para utilizarmos o ChatGPT ou algo do tipo, primeiramente precisamos ter um vocabulário muito bom para saber fazer as perguntas que queremos, porque de inteligente a inteligência artificial não tem nada; cumpre funções pré-determinadas, é uma grande aliada da pesquisa, só que, ao mesmo tempo, é preocupante, porque é um sistema que se retroalimenta do próprio uso. É um cérebro, metaforicamente falando: vai se expandindo conforme o alimentamos. Se tem pessoas fazendo pesquisas e alimentando essa rede com informações falsas, duvidosas, fraudulentas, ou um conteúdo muito empobrecido, vai se refletir para quem pesquisa. Ter repertório é fundamental para acessar essa ferramenta.
Por já nascerem neste contexto, caracterizado pela velocidade informacional, as crianças seriam as mais prejudicadas ou estamos todos no mesmo barco?
Estamos todos no mesmo barco, mas somos afetados de maneiras diferentes. A enxurrada de Alzheimer que estamos vivenciando, por exemplo, as doenças neurodegenerativas, as ansiedades, as depressões, os problemas psicológicos se refletem pelo nosso estilo de vida. Mas as crianças são as mais afetadas, com certeza. O homem é um ser de encontro, basicamente. Nós precisamos nos socializar, ter olho no olho, pois temos os neurônios espelhos, que sincronizam a nossa ideia: não conseguimos falar do mesmo assunto se não estivermos com o olho no olho. A linguagem é a única coisa que nos humaniza no sentido mais pleno da palavra, pois é pacificadora, estamos levando em consideração as emoções de uma outra pessoa, as ideias, e isso só é possível através de um diálogo aberto, não reducionista, um diálogo franco em que a pessoa consiga se comunicar de maneira clara. Então, as crianças são mais prejudicadas porque falta esse tempo. É uma coisa que se constrói com quantidade e qualidade. Eu trabalho há muito tempo com bebês, sou especializada em primeira infância, e quando comecei a trabalhar com os idosos, também percebi isso, como eles afloram, principalmente em casas de repouso, quando recebem atenção. É incrível. Ou seja, o olhar do observador é muito importante para com as crianças, para com os idosos, essa parte da população que está jogada às traças nesse mundo caótico.
De que maneira a vida moderna afeta a nossa atividade cognitiva?
De todas as formas possíveis. O jeito que o nosso sistema está estabelecido não visa o desenvolvimento humano, isso é muito claro, visa o lucro. As pessoas, na maioria das vezes, não trabalham com coisas que elas gostam, não têm o estilo de vida que gostariam de ter, não têm tempo de fazer as coisas que gostam e, às vezes, quando têm, não sabem o que fazer com o tempo. Então é muito complicado. Enfim, infelizmente, temos um problema de base que é uma troca de paradigma do jeito de viver. Quando não fazemos o que gostamos, quando não usamos os nossos talentos e não temos esse espaço de autenticidade — e é isso que o artista luta muito para ter —, a vida pode ser bem insatisfatória. Temos que repensar, e é aí que entra o empreendedorismo social. Será que não seria legal reproduzirmos riquezas, mas privilegiando o ser humano acima do lucro? É uma questão que eu gosto muito de pensar.
Agora uma pergunta bem sucinta e eu tenho certeza que a resposta não será [Risos].
Ai, meu Deus!
A música é curativa?
A música é curativa. A primeira experiência estética que tive com a música foi por volta dos três anos de idade, assistindo ao desenho do Pica-Pau, ouvindo o Chopin no piano, aquilo me arrepiou, aquilo me falou! Depois desse dia só pensava “Quero um piano, quero tocar piano!”. A música tem um negócio que faz parte do mistério divino, ninguém nunca vai descobrir o que é. Eu realmente a coloco num pedestal. Acho que ela é ciência, conhecimento de mundo, educação, medicina, enfim, muita coisa. Tanto é que, para os gregos, a música explicava a origem do universo. Atualmente, estudos bem aprofundados mostram, em tempo real, o que está acontecendo na cabeça de um músico, na cabecinha de uma criança que está sendo submetida às aulas de música. Ela [a música] está associada diretamente à emoção, ao aprendizado e à memória. Cientistas dizem que a partir do quinto mês a criança já pode ser estimulada auditivamente. Toda a parte motora está ligada ao som. O idoso esquece tudo com as doenças neurodegenerativas — o ápice seria o Alzheimer, que é uma morte muito mais rápida dos neurônios — e o que fica? A música. Sabe cantar até a letra. Não sabe mais falar, mas consegue cantar. É uma coisa louca. Então, sim, a música é curativa. A literatura que temos não dá conta do poder que a música tem.
Quais são os impactos da música erudita no nosso cérebro?
A música é um produto de um cérebro humano, tem um compositor por trás. Com a música erudita atingimos uma sofisticação sem precedentes no meio musical, porque tem uma complexidade de elementos. A questão da própria forma, que passa por vários momentos: começo, introdução, desenvolvimento e final. É uma sofisticação harmônica e melódica, além das frequências. Enfim, são muitas informações. Numa peça erudita tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, são nuances, dinâmicas. É muito diferente da canção, que é aquela coisa de três minutos, geralmente monótona no sentido de dinâmica. Tem toda uma educação para se escutar música erudita, já que o nosso cérebro é feito de impulsos elétricos Tudo é frequência, vibração. Tudo. Uma cor tem uma frequência. O nosso cérebro não distingue cores, distingue impulsos elétricos. Com som é a mesma coisa. A música é arte do tempo, isso já a difere e a coloca num patamar diferente de qualquer outra arte.
Bonita definição de música
Porque só conseguimos escutar se prestarmos atenção e só colocamos uma coerência se estivermos ali com presença. Precisa de presença para a música. A presença que temos de ter para se relacionar com aquele contínuo de sons, porque é um repertório poderosíssimo de estímulos eletrônicos que estamos dando para o nosso cérebro, que se complementam e que têm uma geometria própria, com todos os atritos, com as partes de tensão que precisam de resolução. As dissonâncias precisam ser resolvidas.
Existe tempo para contemplação nos dias atuais?
Está tendo um movimento muito interessante no mundo. Como outsider, gosto de observar várias tribos, como que as pessoas vivem. Trinta anos atrás era muito raro falar que as pessoas meditavam, por exemplo. Era muito raro falar de técnicas de respiração, de meditação, e hoje em dia ligamos o YouTube e vemos aos montes por aí. Estamos tendo mais consciência, ou pelo menos falando mais sobre o assunto, o que eu vejo como muito positivo, porque a contemplação faz parte da gratidão de estarmos vivos. A contemplação só faz sentido se tivermos pessoas com quem dividir a beleza que estamos percebendo, seja ela qual for. E cada um vai ver beleza em uma coisa diferente. A contemplação só existe quando percebemos o que é o contemplar na sua essência.
Qual é o papel da beleza nas nossas vidas, seja ela originada das mais diversas fontes, como música, paisagem ou arquitetura?
Acredito que a beleza faz parte de um valor. Um valor a ser agregado, a ser conquistado. Devemos procurar ver o belo em tudo e se cercar de coisas belas, porque acho que nós somos pessoas de luz que precisamos da beleza para nos alimentar. Quero me cercar de beleza, percebi que faz bem para a minha saúde. Se vou usar uma xícara, quero uma bonita. O belo está nos olhos de quem vê. Cada um tem que achar o seu belo.
As artes, em geral, têm um poder transcendental?
Transcendental é a palavra perfeita. Somos muito complexos. Só vemos a casca, vivemos num mundo de aparências e utilitário, em que tudo tem que ter uma utilidade para se justificar. De repente vem a arte, a religião — no sentido de religare —, o amor, a morte e a filosofia e tira tudo isso do lugar. A arte é totalmente transcendente, tanto é que o artista é um outsider. O artista não vive no mundo, ele observa o mundo. Somos seres divinos e espirituais e temos outras necessidades.
O que podemos fazer por nós mesmos nesse contexto caótico?
Uma ótima pergunta e gostaria de ter uma ótima resposta [Risos]. Acredito que tudo passa pelas prioridades, por um planejamento. Tudo passa pelo autoconhecimento. Tem que saber quem é você, de onde veio, o que está querendo, quais são os seus pontos fortes, seus pontos fracos. Eu tomo muito cuidado com o que escuto, eu já não estou ouvindo tanto o noticiário como fazia antes, porque me faz mal. Temos que nos proteger nem que seja um pouco. Ficamos escravos das redes sociais. Então temos que saber qual é a nossa missão aqui, saber o que queremos, pelo que vivemos. Temos que dar um sentido, um significado para a nossa vida, e cada um vai ter que fazer isso individualmente, porque somos muito diversos. Temos uma força incrível para construir, realizar. Particularmente, tenho uma ideia utópica que eu vou, através da educação, contribuir nem que seja um pouquinho para que algumas pessoas percebam que dá para melhorar a vida fazendo escolhas inteligentes.
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