Elizabeth Kantor está de volta e veio com tudo. O Guia Politicamente Incorreto da Literatura acaba de chegar ao Brasil pela Simonsen e promete desafiar a ala “não-me-toque” e, claro, “especializada em literatura”. Os politicamente corretos a quem Kantor praticamente aponta o dedo em riste são os que ocupam cargos em escolas e universidades mundo afora, não apenas negando aos alunos a oportunidade de conhecer cânones literários como não permitindo que conheçam a si mesmos – e logo a natureza humana – por meio das grandes obras. Mestre em Filosofia pela Universidade Católica da América e doutora em Inglês pela Universidade da Carolina do Norte, Kantor também escreve para o Huffington Post, Washington Times, National Review e Boston Globe. Para a FAUSTO, com exclusividade, alerta sobre as gerações de indivíduos frágeis e despreparados que a sociedade está criando. O que é, no mínimo, perturbador.
Tradução: Elisabeth Bueno de Camargo.
FAUSTO – Pessoas politicamente corretas têm medo – antes de tudo – de si mesmas?
Elizabeth Kantor: Acredito que talvez seja o contrário: elas têm medo da realidade externa, realidade esta que não pode ser absolutamente controlada, da mesma maneira que controlam as coisas internas. Nesse sentido, vemos jovens muito frágeis nas universidades americanas, que demandam “trigger warnings” [Aviso de que vai ser abordado assuntos polêmicos e/ou potencialmente ofensivos] antes que os professores prossigam com assuntos relacionados às realidades mais perturbadoras, tais como o estupro, até mesmo exigindo que determinadas obras da literatura clássica sejam removidas do currículo. O que é totalmente contraproducente! O mundo é cheio de pontas cortantes e perigos reais, e um dos propósitos da educação é preparar os jovens para essa dura realidade enquanto eles ainda se encontram num ambiente relativamente seguro e descontraído. A sala de aula, onde os estudantes estão discutindo os estupros de Ovídio ou os assassinatos de Homero é, na verdade, um “espaço seguro” quando comparado a muitos outros lugares do mundo — da zona controlada pelo Estado Islâmico na Síria às boates gay em Orlando — onde pessoas são literalmente estupradas e assassinadas. Como A. E. Housman explica, a poesia nos arma para a realidade. Em alguns casos, no entanto, os que aderem ao politicamente correto temem até alguns fatos sobre si mesmos — por exemplo, o fato de que nasceram homens ou mulheres, que o sexo biológico os definem, não em todos os sentidos, mas nos mais relevantes, e limitam suas opções, e que isso é algo que não pode ser mudado apenas por se “identificar” algo diferente do que na verdade são.
Existe pensamento que não seja ideológico?
Depende do que você entende por ideologia. Em geral, nossos pensamentos são induzidos e definidos por nossa visão de mundo, na qual se constrói, em parte, através das informações que coletamos pela observação da realidade até o momento, em parte por premissas e princípios — alguns dos quais que eu diria serem inatos, ou pelo menos inatos ao raciocínio humano (variando do “2+2=4” até “matar é errado”), e também por premissas e princípios adotados do mundo exterior pelas mais diversas razões. Ninguém tem um entendimento perfeitamente objetivo da vida, como uma verdade absoluta e acabada. Mas, existem alguns sistemas de crenças e valores que definitivamente tornam o trabalho de apreensão da realidade mais dificultoso, até mesmo armando-nos contra a realidade, no sentido oposto da citação de Housman — tais sistemas colaboram para a negação dos fatos ao invés de preparar-nos para lidar com eles. E existem outros sistemas mais próximos da verdade, mais compatíveis com a realidade. Quer dizer, o marxismo dificultará que você reconheça as realidades econômicas pelo o que são, e o feminismo radical vai atrapalhar a aceitação dos fatos que você está acostumado a perceber sobre homens e mulheres.
O que são “livros ruins”, segundo a visão politicamente correta?
Bem, essa definição se expande a cada dia. Até o momento, parece que qualquer livro escrito por autores homens-brancos-falecidos, mas também, qualquer livro que incomode ou crie um desconforto a alguém
A sala de aula ainda é o melhor lugar para a formação de um indivíduo do que os espaços sociais – virtuais ou não?
Penso que algumas coisas que você pode fazer num ambiente formal de estudos não podem ser realizadas facilmente numa configuração social, real ou virtual. Quando estamos nas mídias sociais, com frequência estamos apenas exibindo nossas habilidades intelectuais (eu me declaro culpada!), e virtualmente, nunca tomamos o tempo necessário para aprofundar nenhuma discussão. E depois, existe o fato de que a investigação intelectual e o debate não são exatamente divertidos para os que tendem a se ressentir quando assuntos dessa natureza são inseridos em suas vidas sociais. Felizmente, este não é o caso de todos os círculos sociais, estou pensando nos “The Inklings”, um grupo de intelectuais, amigos filósofos- literários, que se reunia uma vez por semana nos anos 40 em Oxford para ler os manuscritos uns dos outros em voz alta — algumas peças de O Senhor dos Anéis foram lidas em primeira mão nesses encontros — e discutiam-se seus diferentes pontos de vista em debates bastante animados. Mas, em minha experiência, mesmo pessoas inteligentes e com visões interessantes, em geral não gostam muito de expor suas divergências dessa maneira. Eu diria que isso é especialmente verdadeiro aqui nos Estados Unidos, quando comparado ao Brasil! Em breve passagem pelo Brasil, em 2013, para divulgar meu livro A Fórmula do Amor, tive a impressão de que o ambiente intelectual é mais saudável do que nos Estados Unidos, com pessoas muito mais interessadas e dispostas a discutir idéias.
“Leia e chegue às suas próprias conclusões” e não às conclusões dos outros é a condição sine qua non para blindar-se do politicamente correto?
“Blindar-se” não me parece uma metáfora apropriada, uma vez que se libertar do politicamente correto não é se proteger de ideias de qualquer tipo, mas trata-se de desligar aqueles bips de censura (piiii) ou livrar-se dos tampões de ouvido para que se leve em consideração aqueles fatos e ideias que os defensores do politicamente correto não permitem que você escute. Certamente, será difícil tirar suas próprias conclusões se você lê o mundo como os professores universitários politicamente corretos têm ensinado você a ler — olhando para tudo de uma maneira paranoica, desconfiando de que todos os autores homens-brancos-falecidos tramaram a perpetuação do poder — ou então, evitar totalmente alguns livros apenas pelo fato de que eles não são considerados politicamente corretos.
Game of Thrones pode ser considerado um retorno às obras antigas silenciadas pelo politicamente correto? George R. R. Martin trata exatamente de alguns pontos que você levanta em seu livro como: morrer em batalha é nobre, heróis merecem respeito e gratidão, o cristianismo é uma força transformadora e civilizadora, cavalheirismo não subjuga a mulher…
Tenho de admitir minha ignorância, nunca assisti ou li Game of Thrones. Fico feliz em saber que um seriado atual e tão popular aborda tais temas. Ouvi dizer que é uma série brutal e bem violenta, mas tenho a sensação de que o tratamento literário da barbárie e da brutalidade pode ser um passo importante em direção ao fim da barbárie e brutalidade, e o início da civilização. Estou me lembrando das Ilíadas de Homero, que retrata algumas das experiências humanas mais terríveis — desde a guerra brutal ao sexo escravo — e ainda assim as retrata de uma maneira muito humanizante, permitindo ao leitor que o inimigo seja visto com compaixão, por conta da experiência de compartilhar a tragédia da condição humana.
O politicamente correto é uma ameaça à liberdade?
Certamente, sim! Nem mesmo permitindo que as pessoas pensem livremente. Proíbe-nos de chegar às conclusões baseadas na razão e nas evidências vistas com nossos próprios olhos. Dissemina o pensamento de que qualquer um que ouse discutir determinados assuntos ou levantar certos fatos é um ser inadequado e inaceitável. Cada vez mais, proíbe o contato com a literatura e com as ideias consideradas passadas, a não ser que façam parte dessa gama bastante estreita do considerado politicamente correto.
Qual a relação entre o narcisismo e o politicamente correto?
Não posso falar sobre narcisismo como patologia, mas certamente o politicamente correto faz com que as pessoas sintam-se seguras ao se confinarem em uma realidade auto-aprovada e auto-criada, permitido-lhes evitar qualquer contato com realidades incômodas que possam desafiar seu autoconceito. Um tipo de segurança muito perigosa — para o indivíduo e para a sociedade como um todo — a longo prazo. O contato com grandes obras literárias e grandes idéias do passado é muito útil para corrigir qualquer ilusão egocentrista de que sabemos tudo, de que somos mais inteligentes e mais virtuosos do que qualquer um, de que somos auto-suficientes e não precisamos de nada nem ninguém fora nós mesmos.