Fernando Amed: “As reflexões de Thomas Sowell abririam grandes perspectivas no Brasil”

“Se fosse mais lido, Sowell agiria como uma espécie de profanação das crenças dogmáticas mais arraigadas”, reflete o historiador Fernando Amed, doutor em História pela Universidade de São Paulo, autor de Thomas Sowell – Da obrigação moral de ser cético. Esse nome fora da curva no debate, ainda pouco lido no Brasil, é um economista formado em Harvard, mestre pela Universidade de Columbia e doutor pela Universidade de Chicago. Mas é claro que não é apenas o seu currículo acadêmico que chama a atenção. Thomas Sowell é negro e mesmo tendo nascido muito pobre, dispensa o discurso de “vítima do sistema”, inclusive opondo-se veementemente, por exemplo, às cotas raciais nas universidades. Aos 86 anos, Sowell assina mais de 30 livros e colabora nos principais veículos da mídia americana: The Wall Street Journal, Forbes, Fortune, entre outros. Convidado pela FAUSTO, com exclusividade, Fernando Amed bate um papo sobre o intelectual controverso, mas de modo algum dispensável. Na verdade, indispensável para quem realmente deseja a liberdade de pensamento. Confira!

Fernando Amed
Fernando Amed.

FAUSTO – Sowell é mais perseguido por ser bem-sucedido ou por negar a postura de vítima?
Fernando Amed: 
Não se pode dizer que seja um intelectual perseguido, uma vez que o meio intelectual norte-americano, diferente do nosso, comporta espaços para as diferentes visões sobre esses temas já apontados. Assim, há horizonte político, universitário, editorial e de mídia para as ideias que Sowell expõe. Algo quase que impensável no Brasil.

Sim, praticamente.
Na medida em que suas obras forem lidas por aqui – uma esperança, quase um ideal – creio que poderiam, sim, mobilizar um debate, primeiramente nos termos das preocupações que sua pergunta focou. E aí, preliminarmente, acredito que veríamos os famosos argumentos ad-hominem.

Do que se trata?
Atacaria-se o argumentador e não os argumentos, algo bastante comum nesses tempos de infantilização e de mistificação do passado, o que podemos perceber em especial, nas hostes intelectuais que se ligam a um certo entendimento da tradição que com muita distância vem sendo encampada pelo que hoje se entende como esquerda, ou algo parecido. E que, ao que parece, está muito mais próxima de uma configuração estético-moral, tendo em mente uma união – à moda de Platão – entre o belo, o bem e o verdadeiro. Colocar esse dogma em dúvida conduziria Sowell para uma posição de herege. A ausência desse pensador na persona de vítima, iria, sim, ser percebida. Esse ícone se instalou em nosso país migrando da nossa herança jesuítica – a primeira forma de pensamento aliada à prática e alteração de hábitos e comportamentos – às promessas do marxismo mais simplificado, em especial àquele que oferece às vítimas – quando guiadas, conduzidas e conscientizadas pela minoria esclarecida –  à resolução da aporia da queda: podemos, sim, recuperar o paraíso perdido.

Thomas Sowell situa-se em quais temas no debate norte-americano?
Os temas sobre os quais discorre contam com uma tradição de reflexão desde praticamente a independência desse país. Igualdade e liberdade, por exemplo, perfazem dois aspectos basilares do pensamento americano e continuamente são revistos e retomados sob a luz das políticas públicas ou em reação às grandes alterações de hábitos e comportamentos que se percebe na América, de modo mais expressivo, durante o século XX. No livro, busquei situar o Sowell que transita por esses temas em parte a partir de uma herança tocquevilleana [Alexis de Tocqueville, 1805-1859, francês, autor de A democracia na América, 1832]. Sowell se preocupa com a disposição obsessiva pela igualdade – que se configura na forma de movimentos, ideologias, inserções do Estado, políticas públicas, cotas raciais, igualdade de gênero, entre outros – e um abandono da reflexão sobre a liberdade, de longe o maior capital conceitual do ocidente, ao menos desde o século V a.C.

É particularmente aí que o ceticismo do autor se instaura?
Sowell é um pensador bastante imune aos dogmatismos e aos insights do wishfull thinking, tão presentes numa era que se apressa e que anseia pelo último post que pareça ser definidor daquilo que realmente acontece. Como professor e schollar, outra atenção de Sowell se dá no aspecto educacional. Que tipo de concessões estão sendo operadas nas mais várias instâncias do ensino e que terminam por somente se alinhar às modas ideológicas mais ou menos recentes?

Em Sowell, como é tratada a questão da responsabilidade individual, principalmente na conquista de uma vida minimamente confortável?
Sowell se mostra extremamente preocupado e atento aos aspectos abstratos que tendem a erigir uma outra realidade, descartando assim os dados que por ventura não se ajustem aos princípios ideológicos previamente aceitos. Como se trata de um pensador que leva em consideração as permanências na história e que opera com o conceito mais longevo da natureza humana, Sowell acompanha os projetos modernos e contemporâneos vendo-os como tributários da concepção de luta política como meio de rompimento com as tradições – e sobre isso o autor não vai julgar se são melhores ou piores – visando a instauração de novas ordens, hábitos e comportamentos que são defendidos como positivos para o coletivo. Seu ceticismo, bastante técnico, se configura na incerteza em relação às consequências daquilo que uma vez posto em prática caracteriza-se pelo desconhecimento do que quer que possa vir a acontecer. Os movimentos pela ação afirmativa ou pela igualdade de gênero – que nos Estados Unidos já contam com uma espessura histórica que inclusive possibilita a avaliação de seus acertos e equívocos – na visão do autor, podem, sim, propiciar a dificuldade da reflexão nos moldes mais abertos, francos e livres.

Há algo mais?
Percebo também que os aspectos remetidos ao percurso do homem Thomas Sowell – laços familiares, seu trabalho, carreira intelectual, entre outros – terminam por estabelecer intermediações com os objetos de estudo que ele escolheu abordar. Sowell não pode ser visto como um defensor incondicional do capitalismo – uma das críticas no molde wishfull thinking que eu reportei – mas, de modo objetivo, ele percebe, sim, ganhos no aumento da riqueza propiciado por esse sistema quando suportado pela liberdade de opinião, de credo e de orientação política. Mas ele vê esses acertos num período anterior à década de 1960. O narcisismo e o hedonismo seriam os temas mais significativos para se abordar o contemporâneo, sendo que os laços anteriores que também redundavam em conforto, perigosamente vão dando lugar para o declínio e o esgarçamento da responsabilidade individual. O inferno são sempre os outros que me impedem de ser feliz, de ter acesso à educação, à saúde, e, principalmente, aos bens de consumo como felicidade, educação, saúde novamente, mas agora num smartphone  de última geração e que se deseja como um direito de constar como um item da cesta básica.

Quais temas em Sowell considera ser de extrema urgência para o debate público no Brasil?
Muitos. Noto temas específicos e que se remetem às políticas de cota raciais ou de gênero. O estudo da experiência norte-americana me parece extremamente significativo, uma vez que essa nação já está às voltas com essas discussões. No caso das discussões raciais, ao menos desde a primeira metade do século XIX. Nas de gênero, mais especialmente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, passando pela chegada à pílula anticoncepcional, pelo aprimoramento tecnológico, pela inserção da mulher no mercado de trabalho, pelas lutas e protestos, entre outros. Em Conflito de Visões e Intelectuais e Sociedade, por exemplo, a genealogia que ele fez acerca das visões restritas e irrestritas, ou da tomografia dos conceitos de intelectual ungido e do intelectual com visão trágica, se perfazem em abordagens raramente vistas e tratadas no nosso país. Elas virariam o estômago daqueles que são tributários de um tipo de pensamento que parte de uma mescla entre cristianismo jesuítico com uma pós-esquerda esmaecida. O ceticismo de Sowell o habilita a articular essas alterações de modo não partidário ou ideológico. Sua formação em economia ainda permite acesso a dados distantes dos jargões. E, de modo geral, entendo que a reflexão no Brasil – sobre esses temas, bem como sobre o que se diz como neo-liberalismo ou estatismo – está muito longe de sequer contar com a possibilidade de oxigênio. Mas, na hipótese de se abordar as reflexões de Sowell, sem partidarismo ou parti-pris ideológicos, corporativos, ou de classe – outra esperança, quimera ou ideal – as discussões engrandeceriam o debate. Começaria pelo fato dele ser um intelectual de ascendência afro-americana e que se indispõe com a política de cotas. Como o nosso quase que místico e monolítico meio intelectual – editores, mídia, universidades, encontros universitários, entre outros – reagiria a isso se não através do argumento ad-hominem? Do ponto de vista de uma discussão aberta para a dúvida e para as incertezas, as reflexões de Sowell abririam grandes perspectivas no Brasil.

Por que as ideias de Sowell chocam tanto?
Bem, se partirmos do ponto de vista que o mundo se descortina para nós com franqueza e generosidade e que podemos até operar na linha do antagonismo bipolar – bom e mal, esquerda e direita, neo-liberais e socialistas, cochinhas e mortadelas, entre outros –, o que Sowell identifica como um grande equívoco do mundo contemporâneo, suas ideias chocam, sim. Dada a filiação infantilizada às tramas, teorias da conspiração, à superficialidade das abordagens políticas, bem como ao baixo nível das discussões nas escolas – tomadas pelo marketing ideológico do bem – as considerações reflexivas de Sowell podem terminar por raspar a tinta das crenças num país em que a política e o pensamento seguem ditames de fé e da crença na infalibilidade dos dogmas cristãos-marxistas in sfumato. A tentativa de se pensar no Brasil tem ganhado cada vez mais um suporte estético. Há certa noção de Belo e de Bem pensar que perpassa o meio intelectual. Nesses casos, sem dúvida, se fosse mais lido, Sowell agiria como uma espécie de profanação das crenças dogmáticas mais arraigadas. Poderia ser visto como um agente do mal.

Quem nunca leu Thomas Sowell deve começar a ler por quais razões?
Pelo apreço à dúvida, pela aceitação de que o conhecimento se estrutura na medida em que nos desequilibramos em relação ao que até então era percebido como uma certeza, pela suspeita em relação aos dogmatismos – sejam eles de quaisquer hostes políticas, religiosas ou epistemológicas. Pelas contribuições que ele oferece em relação aos temas que se perfazem como reincidentes no Brasil e no mundo contemporâneo – políticas raciais ou de gênero, ideologias. Pela maturidade intelectual que sua reflexão oferece ao notar que as certezas são sempre provisórias e que as crises epistemológicas humanizam todo tipo de pesquisa ou inquérito. Por poder despertar nos jovens o gosto pela pesquisa quando alicerçada na liberdade de questionamentos sem que com isso venha a despertar a fúria e o risco de exílio da comunidade dos bem-pensantes. Pela possibilidade de caminhar para a autoria de uma reflexão que venha inclusive a contribuir para, de fato, conhecer as nuanças, os desvios, as dificuldades presentes na nossa percepção do mundo contemporâneo. Parafraseando Luiz Felipe Pondé, para aqueles que querem experimentar a coragem de se aventurar pelo pensamento, mais distante dos gurus, das modinhas, enfim, de muitos que pretendem salvar a si próprios tomando os outros como cobaias e tubos de ensaio. Enfim, pelos riscos – bastante atraentes – de se deparar com o ceticismo.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.