Flávio Ricardo Vassoler: “Dostoiévski ocupa uma posição análoga à de Sócrates”

Por que a literatura russa é tão unânime? Por que Dostoiévski é tão genial? Por que ambos são assuntos inesgotáveis quando se trata da natureza humana? Foi esse fascínio que levou Flávio Ricardo Vassoler a transformar sua tese de doutorado no livro Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo. Escritor e professor, Vassoler é doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University, Estados Unidos. Escreve para os cadernos Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, e Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, além das revistas Veja e Carta Capital. É voz do diálogo? Sem dúvida. Por isso também conversa com a FAUSTO com exclusividade sobre as possíveis leituras que se pode fazer desse arcabouço literário excepcional cujo nome é Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski.

FAUSTO – Existe uma explicação fácil para o fato de a literatura russa ser tão unânime? Uso livremente o termo unânime. É que sempre vi que quem aprecia literatura tem a literatura russa em altíssima estima.
Flávio Ricardo Vassoler:
O crítico literário austríaco Otto Maria Carpeaux, que acabou se radicando no Brasil, afirmou certa vez que a literatura russa do século XIX, o chamado “século de ouro”, era a grande arena das discussões políticas, sociais, filosóficas, espirituais e econômicas da sociedade à época, já que, por causa da forte censura tsarista à liberdade de expressão e manifestações, a imprensa, os sindicatos, as universidades e os partidos se viam tolhidos em sua possibilidade de articular uma efetiva sociedade civil. Nesse sentido, a literatura russa congregou em seu bojo todas essas grandes questões de maneira esópica, isto é, nas entrelinhas de seus transcursos narrativos. É assim que, em Púchkin, Gógol, Dostoiévski, Turguêniev, Tolstói e Tchékhov, as obras estruturam, em termos microcósmicos, leituras e diagnósticos profundíssimos de um movimento que Hegel chamaria de o “espírito do tempo”. O amálgama entre literatura, filosofia, história, política e religião se estrutura com força objetiva para tais autores que, em enorme medida, tentavam entrever os (des)caminhos da história. Lembremos que o século XIX, à esquerda e à direita, tendendo à revolução ou ao imperialismo, tinha como ethos e como pathos a crença de que era possível reconfigurar, radicalmente, a face da Terra. Tal ímpeto e tais disputas, como hoje sabemos, moldaram o transcurso histórico do século XX em suas esperanças e tragédias.

Existe de fato uma “alma russa”, uma “russianidade”?
Se acompanharmos o caráter agônico e messiânico, reacionário e revolucionário, utilitário e passional das personagens da grande literatura russa do século XIX, veremos que, ao lado de Púchkin, Gógol, Turguêniev, Tolstói e Tchékhov, Dostoiévski desponta como um dos grandes responsáveis pela construção do processo que você chama de “russianidade”. E, aqui, vale a pena fazer uma observação sobre o caráter radicalmente contraditório das posições políticas de Dostoiévski. O autor era profunda e encarniçadamente anticapitalista – ao longo de sua obra, o desprezo pelo materialismo comezinho e utilitário, idólatra e mediocrizante não poderia ser maior. Uma bela síntese das posições de Dostoiévski a esse respeito pode ser encontrada em Notas de inverno sobre impressões de verão, relato de viagem ao longo do qual o autor tece ácidos comentários sobre o culto ao deus dinheiro por parte de franceses e ingleses. Entretanto, o anticapitalismo dostoievskiano não o leva, inequivocamente, às fileiras da esquerda, apesar de o autor ter sido quase fuzilado por ter feito parte de um círculo revolucionário. Em meio à miríade polifônica – e contraditória – que compõe a obra do autor, é possível encontrar o diagnóstico de que a Rússia feudal, nobiliárquica e tsarista poderia conter o avanço do individualismo e do materialismo ocidentais por meio de sua tradição cristã. Neste momento, Dostoiévski realiza uma síntese, à direita e à esquerda, entre as premissas eslavófilo-nacionalistas e a noção do trabalho comunal da terra, premissa democrática que daria o tom para que os russos, a partir da base – supostamente – fraterna de sua sociedade, trouxessem uma nova palavra messiânica ao mundo. Felizmente, tal voz reacionária não dá o tom para a obra de Dostoiévski como um todo, apesar de ser um veio importante para a compreensão das tendências político-espirituais do autor. E, por falar em reacionarismo, o neotsar Vladimir Putin vem chancelando, na Rússia, uma leitura de Dostoiévski que, justamente, transforma – e apequena – o autor como uma porta-voz do nacionalismo ortodoxo e messiânico.

O que significa Dostoiévski como um pensador metafísico?
Parte significativa da fortuna crítica do escritor lê Dostoiévski como um autor radicalmente escatológico, para quem as questões últimas da existência fariam temer e tremer cada uma das tensões e decisões que acossam as personagens. Nesse sentido, a frase inicial do ensaio O mito de Sísifo, de Albert Camus, é um belo mote para pensarmos sobre Dostoiévski como um escritor/pensador que narra e reflete sobre o sentido – e a falta de sentido – da existência: “Só há uma questão verdadeiramente filosófica: o suicídio”. Deus existe? Se Deus existe, que relação a divindade tem com o mal? Compaixão, cumplicidade ou sadismo? Existe vida após a morte? Se Deus não existe, tudo é permitido? Se Deus não existe, o eu torna-se Deus? Tais questões, existencialmente inescapáveis, são a abóbada e o subsolo – o céu e o inferno – da obra de Dostoiévski. Em meu livro – e agora me refiro à segunda parte da obra –, argumento que Dostoiévski, como escritor/pensador, erigiu uma possível filosofia da história que faz com que haja uma interlocução emancipatória entre cristianismo e socialismo. Sem Deus, Dostoiévski desponta, a meu ver, como um dos autores mais niilistas. Nesse sentido, qualquer tentativa de transformação social e humana, sem um lastro ético transcendental, redundaria em uma expressão sumamente dantesca de Ivan Karamázov: “Que os répteis se devorem”. Mas, se Deus não existe e tudo é permitido, a obra de Dostoiévski permite entrever uma rearticulação entre história – imanência – e sentido transcendental.

Considera Dostoiévski um escritor pessimista?
Sem Deus, Dostoiévski talvez seja o escritor mais pessimista com que já deparei. Sem Deus, Machado de Assis tende a se tornar o melhor leitor de Dostoiévski. Sem Deus, Dostoiévski corroboraria a última frase – a lápide – de Memórias póstumas de Brás Cubas: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Considera religião uma referência de conhecimento sobre um autor?
Sem dúvida. Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo, no entanto, procura situar Dostoiévski em uma (con)tradição histórico-espiritual que ainda não foi suficientemente desenvolvida pela fortuna crítica. Há muito a ser dito a respeito dos diálogos entre Dostoiévski, Hegel e Kardec. Espero, assim, que meu livro possa lançar luz sobre tais questões e abrir caminhos novos e distintos para os estudos sobre Dostoiévski.

Dostoiévski e religião são dois temas intrínsecos?
Como diria o quase-parricida Dmítri Karamázov, na obra-prima Os irmãos Karamázov: “Deus e o diabo estão em luta, e o campo de batalha é o coração do homem”.

Todos os personagens de Dostoiévski têm desejo de redenção?
A centelha da redenção, imanente e transcendente, finita e infinita, individual e coletiva, histórica e eterna, é um mote fundamental que transpassa as personagens dostoievskianas, sim. Isso não significa, de forma trágica, sadomasoquista e reiterada, que as personagens de Dostoiévski também não sejam transpassadas, em igual – ou mesmo maior – medida pela síndrome de Estocolmo. Nesse sentido, por sinal, compartilho um trecho que considero bastante sintomático do meu livro: Dostoiévski pode ser tido como um dos autores que mais escavaram o subsolo da síndrome de Estocolmo, o amor da vítima pelo carrasco, o apego do prisioneiro pelas grades de sua cela. No mito da caverna dostoievskiano, os cativos se debatem não para arrebentar os elos das correntes que os submetem, mas para apedrejar todos aqueles que tentam demovê-los do charco de suas sombras, do regozijo em sentir prazer com o embotamento da realidade. É assim que tudo aquilo que desponta como algo terno e despido de confronto – algo que tem o sentido de converter a dor em purgação – parece flagelar o niilista com o mesmo rancor que pauta suas (não-)relações. A reconciliação lembra ao homem ridículo a necessidade de se haver com suas próprias faltas, a necessidade de se cicatrizar, ao passo que a inércia tautológica da dor começa a sentir prazer com o punhal a escarafunchar a ferida purulenta. O passo seguinte é transmitir aos felizes (e inscientes) a consciência (e a liberdade) não como compaixão, mas como partilha da dor – se a dor flagela o homem ridículo [personagem do conto “O sonho de um homem ridículo”], que ela passe então a flagelar a todos os demais. Eis o que o niilismo concebe como convivência.

Qual o papel de outros escritores na maneira como conhecermos Dostoiévski? Por exemplo, Rilke, Thomas Mann e Virgínia Woolf.
Diria que, na história da literatura, Dostoiévski ocupa uma posição análoga à de Sócrates na história da filosofia. Assim como falamos em autores pré-socráticos e pós-socráticos, é preciso falar em escritores pré-dostoievskianos e pós-dostoievskianos. Os leitores e leitoras de Thomas Mann, grande apreciador da obra de Dostoiévski, entreverão que um espectro ronda os diálogos/duelos longevos e encarniçados de A montanha mágica, o espectro de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski. Parece-me inteiramente inverossímil conceber as obras de autores e autoras tão díspares quanto Franz Kafka e Albert Camus, Samuel Beckett e Guimarães Rosa, Jonathan Littell e Svetlana Alexievitch sem a influência de Dostoiévski. É como se, ao im/explodir os marcos da modernidade crescentemente ateia e materialista – nesse campo, como as análises históricas de Dostoiévski bem puderam antever, capitalismo e socialismo se irmanam –, Dostoiévski lançasse escombros para as mais diversas direções. Autores e autoras posteriores ao mestre russo vão tentando compreender, então, o que fazer com tais estilhaços.

Por que você escolheu Dostoiévski? A escolha de um objeto de pesquisa costuma falar muito sobre algo estritamente particular…
Como bem podem deduzir que a pletora de questões e esperanças, pulsões e angústias que a obra de Dostoiévski movimenta tende a escolher – e magnetizar – todos aqueles e aquelas que adentram o labirinto dostoievskiano. Dostoiévski me fez viver em Moscou, durante o mestrado, e em Chicago, durante o doutorado e o pós-doutorado. O autor me fez cruzar as fronteiras antípodas da antiga Guerra Fria que hoje parece deveras requentada. Na Rússia, Dostoiévski também fez as vezes de cupido, já que me aproximei de uma moça muito querida, que depois viria a se tornar minha namorada, também por causa de nossa grande paixão pela obra dostoievskiana. Em Dostoiévski, pude entrever a possibilidade de não cindir meus interesses e curiosidades intelectuais e artísticos em especialidades que não dialogam – ou não podem dialogar… – entre si. Da literatura à política, da filosofia à sociologia, da psicologia à religião, Dostoiévski me permitiu sobrevoar uma verdadeira floresta negra – ou, então, a taiga russa – de questões e contradições.

O que você quer dizer com “fetichismo”, referente ao título de seu livro? Trata-se de algum exagero em relação ao que o senso comum entende sobre Dostoiévski?
O título da minha obra – Dostoiévski e a dialética – é seguido de um subtítulo – Fetichismo da forma, utopia como conteúdo – que pode tornar mais compreensível o sentido “fetichista” em Dostoiévski. O livro está dividido em duas partes: a primeira parte é um estudo sobre a forma em Dostoiévski que remonta às discussões estabelecidas pelo crítico literário russo Mikhail Bakhtin, em sua obra Problemas da poética de Dostoiévski; a segunda parte é uma tentativa de extrair uma filosofia da história da obra pós-siberiana de Dostoiévski a partir das tensões e afinidades eletivas envolvendo cristianismo e socialismo. Com muita honestidade intelectual, Bakhtin admitiu, logo no início de sua obra fundamental sobre Dostoiévski, que suas análises não conseguem sintetizar, totalizar ou concluir uma nova teoria sobre o escritor russo.

Dê um exemplo.
A teoria polifônica bakhtiniana – consonância e dissonância de múltiplas vozes cuja dinâmica o crítico pôde extrair da obra de Dostoiévski – não consegue explicar, por exemplo, como a independência relativa das personagens em relação autor pode conviver com a noção de plano autoral que guiava a escrita de Dostoiévski. Um exemplo: a despeito de as posições políticas e religiosas – a bem dizer, deveríamos usar o termo “político-religiosas” – do escritor serem profundamente ambíguas e contraditórias, há personagens pedófilas [Svidrigáilov, em Crime e castigo; Stavróguin, em Os demônios], homicidas [Raskólnikov, em Crime e castigo; Rogójin, em O idiota; Smierdiakov, em Os irmãos Karamázov] e ateias [Kiríllov, em Os demônios; Fiódor Karamázov, em Os irmãos Karamázov] que tendem a se contrapor, radicalmente, a tendências do próprio autor. Nesse sentido, elas assumem posturas de confrontação – quem já leu Dostoiévski conhece a longevidade e a importância dos diálogos/duelos ideológicos – que, no limite, podem estilhaçar uma dimensão de todo autoral concluso e bem acabado, como se fossem fissuras potencialmente centrífugas em um cristal. Como conciliar, então, a noção de sistema integral com a dimensão fundamental da contradição que tanto caracteriza as personagens agônicas de Dostoiévski? Tal questão vem dividindo – por vezes, cindindo… – a fortuna crítica do escritor até os dias atuais. Há uma série de hipóteses, à (extrema) direita e à (extrema) esquerda, para tentar dar acabamento ao edifício tortuoso de Dostoiévski – é como se o escritor tivesse erigido a versão russa da Torre de Pisa. Entre os críticos que apostam no nacionalismo russo ou no anarquismo, no cristianismo ortodoxo ou no ateísmo, vale um aforismo sumamente espirituoso do irlandês Oscar Wilde: “Quando os críticos discordam entre si, o artista concorda consigo mesmo”. Em meu livro, proponho uma resposta para a lacuna bakhtiniana, ao tentar compreender como a independência relativa das personagens, em termos estéticos e ideológicos, poderia conviver com noções de totalidade e plano autoral. Para isso, mobilizo categorias com as quais Bakhtin não pôde trabalhar, uma vez que sua obra foi publicada já sob o punho da forte censura do período estalinista. É assim que, ao reaproximar Bakhtin da tradição dialética, faço com que a contradição seja um elemento estético e uma pulsão humana essencial para compreender Dostoiévski. Imbuído de um instrumental teórico proibido a Bakhtin, pude entrever como a forma em Dostoiévski – mais especificamente, na obra Memórias do subsolo – se estrutura segundo uma dinâmica que, em diálogo com as análises de Karl Marx, chamo de “fetichista”. Quero dizer com isso que, a meu ver, há uma dinâmica de constituição da forma – o “subsolo das memórias”, digamos – que subordina e vampiriza as personagens que, em um primeiro momento, são as entidades que permitem que a obra possa ser expressa. A noção de fetichismo da forma, então, volta à raiz da noção de fetiche entendido como alienação: pensemos, por exemplo, na atribuição de poderes a um totem – um fetiche – para que, prostrados diante do ícone, os membros de uma tribo imemorial peçam aos deuses silenciosos que a colheita vindoura seja deveras farta. Sabemos que uma boa colheita, em enorme medida, advém do trabalho humano, mas o processo fetichista aliena o poder humano para entidades, de tal modo que os criadores se ajoelham diante de sua próprias criaturas deificadas. Desenvolvo uma analogia, então, entre o fetichismo que Marx desvela na lógica de produção das mercadorias – os/as produtores/as de mercadorias se tornam reféns da –usurpação – da riqueza que eles/elas próprios/as produzem – e o movimento da forma em Dostoiévski, na medida em que as múltiplas – e contraditórias – vozes que o homem do subsolo articula acabam se voltando contra ele mesmo, como se houvesse sempre um espectro rondando o (anti-)herói de Dostoiévski – algo como a voz (o conteúdo) que se vê enforcado pela corda vocal (a forma).

O que crê ser uma utopia no pensamento de Dostoiévski?
Essa é a segunda tese do meu livro, argumento que cobre os três últimos capítulos da obra – a “Utopia como conteúdo”. Em suma, afirmo que, para Dostoiévski, não há redenção sem a possibilidade de transcendência, sem o lastro ético embasado por Deus e pelo infinito. Se a causa da transformação social, a utopia e o socialismo se reconectarem com as premissas revolucionárias do cristianismo – e esse é um tema que não só ocupou a superfície e o subsolo das reflexões do autor, como fez com que Dostoiévski fosse quase fuzilado pelo regime tsarista por ter feito parte, no fim dos anos 1840, do círculo revolucionário de Petrachévski –, será possível entrever aquilo que eu chamo de “síntese dialética” envolvendo as redenções imanente e transcendente, a finitude e o infinito, a história e Deus. Em meu livro, estabeleço uma aproximação tão inusitada quanto polêmica entre Dostoiévski, a filosofia da história do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel e a filosofia espírita codificada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec. Refiro-me ao caráter polêmico da aproximação, já que, via de regra, a fortuna crítica do escritor tende a associá-lo, inequivocamente, às hostes do cristianismo ortodoxo, tese da qual me distancio para estabelecer uma nova leitura histórico-filosófica da obra dostoievskiana.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.