Suas opiniões são polêmicas, sarcásticas, cortantes. Acompanhá-lo em suas redes sociais é um teste até para os mais pacíficos – ou talvez para os que resistem um pouco mais às discussões virtuais, quase sempre sem fins definidos ou mesmo proveitosos. Entretanto, parece que Francisco Razzo já está acostumado com isso e de certa forma sente que sua missão está sendo exercida: provocar o pensamento comum de todo o pensamento comum. Promessa de ser um dos autores brasileiros do ano, o título de estreia A Imaginação Totalitária já figura na lista dos mais vendidos e é livro para quem não tem preguiça. Cada ideia que apresenta abriga um universo de referências que lembra o leitor a pergunta de Lewis Carroll : “Até onde você quer descer na toca do coelho?” Formado em Filosofia pela Faculdade de São Bento, Francisco Razzo também é mestre em Filosofia pela PUC-SP e para a FAUSTO, com exclusividade, esclarece algumas provocações na mesma proporção que as suscita. Confira!
FAUSTO – Qual é a ideia mais cotidiana, e que vem de uma imaginação totalitária, independentemente de orientação política?
Francisco Razzo: Com o advento das mídias sociais, não há dificuldades de encontrar exemplos. Difícil é selecionar um. Pois são tantos e tão equivalentes. Antes, cabe definir o que entendo ser a imaginação totalitária, tal como exponho no meu livro. Trato imaginação como a capacidade de dar unidade às expectativas. Meu livro, nesse sentido, pretende ser uma descrição de expectativas políticas. Pelo menos, uma descrição de como não deveríamos fazer política. Por isso, falo dos riscos da política como esperança. E não apresento qualquer análise dos regimes totalitários históricos. A imaginação consiste na faculdade mental de combinar representações fornecidas pela memória com os ideais de futuro — obviamente, de um futuro promissor. É totalitária quando presume uma síntese desse ideal totalizante no ato político. Como é o ideal de mundo de um totalitário? Ele acredita piamente possuir as ferramentas necessárias e definitivas para erradicar o mal do mundo. A imaginação totalitária politiza tudo. Politiza a beleza, a verdade, a fé religiosa. Dito isso, pense na quantidade de gente que transfigura tudo em um ato de salvação do mundo pelo viés político.
Cite um exemplo.
Um amigo meu postou uma piada no seu perfil do Facebook. Era uma piada bem tosca sobre intelectuais que defendem a ideologia de gênero. Veja, sobre intelectuais. Não deu dois minutos, uma pessoa, da família dele, tomada dessa certeza salvífica, disse que ele era o responsável pela morte de gays. Não bastava dizer que a piada era ofensiva. Era preciso mostrar que piada não só não tinha graça, como ele, ao publicar aquilo, assumia a responsabilidade pelo assassinato de cada homossexual. Não deu outra, “porco fascista homofóbico” foi o mais sereno dos insultos. Agora, cá entre nós, qual seria a relação entre fazer uma piada sobre intelectuais — insisto, sobre intelectuais e não sobre gays — e ser o responsável pela morte de um homossexual? Nenhuma. Entretanto, para o ideólogo totalitário, que projeta seu ideal de futuro no presente e tem razão acerca de tudo, há relação íntima. Esse é um vínculo que só a imaginação consegue equacionar. E “animus jocandi”? Nem pensar! A partir disso, qualquer insulto pode ser justificado. O responsável pelo post não é mais bem-vindo no mundo. Pelo contrário, torna-se uma das razões da desgraça do mundo. Com a imaginação totalitária, qualquer insulto (que não deixa de ser um ato de violência) é incorporado por uma forma política de salvação — no livro eu chamei essa violência de violência redentora.
E qual seria o exercício mais simples para controlar a propensão à imaginação totalitária?
Duvidar de si mesmo. Meu livro pretende ser um convite ao ceticismo prudente em matéria política. Cheguei a cogitar como subtítulo: “Pare de acreditar em si mesmo” — claro, crença, aqui, tem a ver com crenças políticas, isto é, a capacidade de construir o mundo a partir da minha imagem ideal de mundo. Então, o subtítulo poderia ser “sobre a importância de desconfiar dos nossos ideais políticos”. O exercício mais simples, portanto, é imaginar um mundo criado com os nossos ideais mais caros. Toda vez que imagino meu mundo perfeito, não consigo resolver o que fazer com os meus “inimigos” — inimigo aqui significa todo aquele que interfere na perfeição do meu projeto, uma mácula. Resisto ao encanto da minha bondade natural e incluo um higiênico campo de extermínio no esboço. Não queria chegar a esse ponto, queria todos os meus inimigos convertidos à minha causa ou que sumissem do meu caminho. Eles não somem! Porém, no meu mundo ideal, não perderei tempo em combater ideias uma vez que é mais fácil eliminar as pessoas. A imaginação totalitária não é genocida em si, o genocídio é acidental a ela. Por isso é tão sedutora. Matar nunca traz o peso da culpa. O problema não é apresentar um manual de como dialogar com “fascista”. O problema, pelo contrário, é saber lidar com os próprios ímpetos totalizantes.
A direita fala sobre o fascista, a esquerda fala sobre o fascista. Quem é, afinal, o fascista, além daquele que ironicamente – pelo menos pelo jeito como a palavra “fascista” está sendo disseminada – é apenas uma pessoa que pensa diferente de mim?
Fascistas somos todos nós. Hoje, por razões históricas que não cabem analisar aqui, “fascista” é o termo usado para tudo o que é de pior em política. Não tem argumentos? Xingue teu adversário de tudo aquilo que você abomina em você. Uma forma pouco precisa, mas com uma enorme carga de significado, para anular a representatividade política de alguém. Mas o que é “fascista”? Basicamente, há duas linhas teóricas sobre o fascismo. Uma restringe o fenômeno à Itália de Mussolini, enquanto a outra compreende o fenômeno de modo mais abrangente. Prefiro o termo “totalitário” para este fenômeno mais abrangente. Nesse sentido, resolve-se o problema semântico. Nem todo totalitário é fascista, mas todo fascista é totalitário. Robert O. Paxton, um dos grandes especialistas no assunto, define o fascismo — aqui compreendido como totalitário — nos seguintes termos: “uma forma de comportamento político marcada por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza”. Paxton fala das “paixões mobilizadoras” (por exemplo, uso a noção de “primado prático da imaginação totalitária”): senso de crise catastrófica, primazia do grupo, subordinação do indivíduo aos deveres desse grupo, crença que o grupo é de alguma forma vítima — o que justifica a mobilização violenta —, pavor do individualismo liberal, necessidade de integração por consentimento — o que impõe a violência excludente para os “outsiders” —, necessidade de uma “liderança” capaz de encarnar o destino do grupo, estética da violência como a eficiência da vontade para êxito do grupo e, por fim, o direito dos eleitos — classe intelectual como classe política — em dominar os demais. Em outras palavras, não se trata de um comportamento exclusivo da esquerda. Trata-se de um comportamento de crente, suscetível a qualquer um de nós.
O esvaziamento da experiência religiosa não tem a ver também com práticas de controle do pensamento na própria religião? Ou seja, antes da política se tornar uma “esperança”, a religião não foi descartada justamente porque foi dominada pela política.
Secularismo é o nome técnico para esse esvaziamento. E não considero que o controle de pensamento possa explicar isso, acho muito psicologizante. O processo do secularismo na modernidade tem raízes mais filosóficas e não se resolve apenas no âmbito político. A história da Igreja Católica se confunde com a própria história do Ocidente. E também pode ser lida como uma história marcada pela tensão entre Estado e Igreja. O fato é que a distinção radical entre Estado e Igreja só foi possível com advento do cristianismo. Em resumo, o esvaziamento da experiência religiosa não se deu por conta dessa tensão, uma vez que essa tensão sempre esteve presente no cristianismo desde a Paixão do Cristo — que, por sinal, anula o poder soberano de César quando Cristo consagra a soberania do Reino de Deus na Cruz. Paradoxalmente é isto: o Reino Cristão não é deste mundo. Portanto, a esperança cristã é a ressurreição, a vida eterna. Em vista disso, o problema do secularismo tem raízes filosóficas numa mudança sobre compreensão do mundo. A descrença na religião se deu por outras vias. A mais importante mudança irrompe na modernidade com a ideia de homem como autorreferência e não mais como criatura. Ideia que culmina nos Iluministas e na profunda crença no poder do conhecimento, na perfectibilidade humana e consequentemente no progresso social. Nascem as esperanças utópicas, isto é, um dia o conhecimento sobre o mundo seria total. Novas instituições sociais e políticas seriam criadas e adaptadas às necessidades do aperfeiçoamento humano.
Se sim, para onde orientar a necessidade do homem de algo maior do que ele? Ou o homem tem que vencer esse impulso?
O homem deve orientar suas necessidades de verdade, beleza e eternidade para a arte e para religião. O impulso humano para eternidade é perpétuo e nenhuma instituição política será capaz de saciar isso. Nosso vazio existencial, nossa consciência de finitude, nossa contingência se resolvem na experiência estética, que precisamos manter longe dos impulsos de poder. Pois, como lembrará T.S. Eliot:
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada.
Quem hoje, no Brasil, instituição ou pessoa, é mais hábil na construção de um sistema de crenças? E qual é a prova disso?
Qualquer um de nós. A prova é a nossa “timeline”.
No dia a dia, quando nos perdemos como sujeitos?
Quando anulamos o outro. O sujeito só faz sentido enquanto constitutivo de uma relação eu-tu.
Existe um caminho de volta?
Só o retorno à interioridade. Como dirá Santo Agostinho: “Não queiras sair; é no interior do homem que habita a verdade”, ou seja, intimior intimo meo, mais íntimo ao homem que a própria intimidade humana.