Jards Macalé: “Fracasse nos momentos que exigem o fracasso”

Jards Macalé é uma unanimidade. Embora não concorde com isso, não tem desafetos. Cantor, compositor, instrumentista e ator, é conhecido por sua postura irreverente e por transitar entre a vanguarda e a tradição da música popular brasileira. Carioca, Macalé tornou-se figura central na contracultura musical dos anos 1970, colaborando com artistas como Gal Costa, Caetano Veloso, Waly Salomão e Torquato Neto. O som que produz é único; o silêncio, sua inspiração. Contudo, é o amor o tema central de sua obra — ou melhor, o coração: ora em linha reta, ora bifurcado. Exclusivo para a FAUSTO.

Jards Macalé
Foto: André Seiti.


FAUSTO — Existe “processo criativo” para um artista verdadeiramente livre?
Jards Macalé: Existe processo criativo sem aspas. Porque, à medida que você vai criando, está dentro de um processo — seja como for. As ideias vão sendo alimentadas, processadas e concretizadas aos poucos. Só que esse processo pode ser meio etéreo. Então, creio que exista um processo criativo sem aspas — embora também exista um processo criativo entre aspas.

Nenhum processo é maior ou menor?
Não, nenhum é maior ou menor. Quando se grava um disco, se faz um show ou se compõe música, existe um processo a ser seguido — que é o de se preparar para a execução. Muitos preferem fazer isso em silêncio. O silêncio é um elemento muito poderoso para a criação. Ou então, treina-se o ouvido para outros sons: é preciso estar atento à vida, para que aquilo que o alimenta o ajude a realizar um bom trabalho.

A vida cotidiana o alimenta? As miudezas da vida?
Claro.

É o teu maior alimento?
Não é o maior.

Qual é o teu maior alimento?
O meu maior alimento é o silêncio. Prefiro o silêncio, sempre. É o silêncio que diz. Ou melhor: o silêncio fala mais alto!

O amor ainda é uma experiência desmedida?
Totalmente.

Estamos mais propensos a fazer guerra do que fazer amor?
O ser humano é tão dual. Ele tanto pode gerar amor quanto pode gerar guerra. Nesse momento, creio que a guerra está mais presente do que o amor, mas quem faz guerra também se destrói. O amor pela vida é que se coloca mais forte em contraposição à ideia da morte que a guerra traz. Quando eu pensei nisso da guerra, pensei no sentido mais cotidiano também. As guerras invisíveis, que podem partir tanto de uma guerra ideológica como de uma guerra de casal dentro de uma casa em silêncio. Porém, de qualquer forma, o amor alimenta mais a vida do que a guerra.

Há solidão na sofisticação?
Você está com perguntas incríveis.

Porque você é extremamente sofisticado.
Há quem diga.

Vamos falar mal de você, então.
Não me sinto tão sofisticado assim. Sinto-me uma pessoa mais próxima do sensível. Sensibilidade para todas as coisas.

Quer coisa mais sofisticada que a sensibilidade?
A solidão é uma companheira maravilhosa para se pensar nas coisas humanas, nas coisas cotidianas. Acho isso extremamente sofisticado.

A solidão também é uma forma de sofisticação.
E é difícil alcançar uma solidão saudável.

Você tem consciência de ser uma unanimidade?
Não, eu não sou unanimidade.

Você é uma unanimidade. Você tem inimigos?
Que eu saiba, não.

Então você é unanimidade.
Não sou.

Todos reverenciam Jards Macalé.
Todos?

Todos. Eu fucei, tentei achar um inimigo seu, fiz até anúncio pago para encontrar um inimigo seu.
Vivo ou morto?

Vivo ou morto. E não encontrei nenhum.
Quando você encontrar, me conte, porque eu quero agradecer a ele.

Por quê?
Porque, se eu não tenho inimigos, ter um ou outro seria algo divino em minha vida. Falando sério agora: eu até amo o inimigo, porque ele discorda de mim e, desde que não queira me matar, o resto a gente conversa. Não sinto ódio de quem não gosta de mim. Somos pessoas diferentes. Temos todo o direito de sermos diferentes. Aliás, eu prefiro a diferença à unanimidade. A unanimidade é burra, como já dizia Nelson Rodrigues.

Você sabe do que eu estou falando, e estar nesse patamar deve ser muito bom…
Sim, eu sei. Só que, para criar, para fazer arte, há muito conflito interno. Às vezes, você se torna inimigo de si mesmo. Então, você pode não ter inimigos fora, mas tem um inimigo interno — e um inimigo interno que você não quer eliminar. Aí você barganha consigo mesmo e chega a um acordo.

Ainda é assim?
Não, nunca foi. Acabei de dizer o contrário, né? São as nossas contradições. [Dá risada]

O que somos sem as nossas contradições? Deixe-me adiantar uma pergunta que estava para o final… O que ainda lhe causa angústia?
Olhar em volta e ver a miséria humana.

Física?
Física!

A fome?
É isso, olhar as ruas. Essa sujeira. É tudo. É a tristeza de ver que o ser humano pode chegar a uma miserabilidade. Não se trata de dinheiro não, é uma miserabilidade espiritual incrível, é fazer com que os outros também se sintam tão miseráveis quanto. Aí dá uma angústia.

Tudo aquilo que é sofisticado, em essência, é desesperador?
Não. A sofisticação exige também um olhar sofisticado. Não chega a ser desesperador. Não, acho que não. O desespero é outra coisa. Desespero é viver sozinho.

Em que momento você acha que conseguiu essa solidão saudável?
Quando estou no meio do mato, perto da natureza, perto da água, da terra. Se chover, então, é uma maravilha. O cheiro da terra molhada, o cheiro das coisas do mato. Gosto muito disso. Em meio a isso, me sinto profundamente só, mas uma solidão que me alimenta, uma solidão que me faz sorrir internamente.

O que pode ser doce no fracasso?
É cada pergunta danada… O próprio fracasso é doce. Claro, você faz de tudo para não fracassar, mas, se isso acontecer, temos que saboreá-lo como algo doce. Caso contrário, pô, será uma tragédia. Temos que olhar o fracasso como algo à parte de quem somos. O fracasso é simplesmente um fracasso. Só mais um. Porque temos vários durante a vida. E, se não os tratarmos com ternura, afundamos. Isso é importante: não fracassar no fracasso.

Hoje, li algo interessante: ver o fracasso como uma companhia.
Fracasse nos momentos que exigem o fracasso.

O que fazer para que grandes ideias não acabem num lugar comum?
Tornando-as lugar comum. Não ser um gênio já é um lugar comum maravilhoso.

Não ser um gênio?
É. O gênio sofre muito. E se ele souber que é um gênio, então… Seria bom poder controlar o próprio gênio.

Mas que virtude há em poder controlar o gênio?
Nenhuma. [Dá risada]

A melancolia é uma companhia imprópria?
A melancolia parece algo negativo, mas não é. Pode ser um descanso da alma. Seja melancólico à vontade, sem culpa.

O que é a alegria para você?
A alegria é um momento sublime. É a prova dos nove, como dizia Oswald de Andrade. A alegria é uma arma potente, inclusive. Muito potente. A alegria é o momento em que você está resguardado de toda essa conjunção de infelicidades que existem por aí.

O que é fé?
Precisamos acreditar muito para ter fé. Não tenho essa fé toda. Não acredito em Deus. E isso me incomoda um pouco.

Por que você não acredita ou por que você não tem capacidade de acreditar?
Porque não acredito.

Não é libertador não acreditar em Deus?
É e não é. É, porque é libertador, as coisas são o que são. Tenho fé na música, mas em Deus, não.

Desde sempre?
Desde sempre. Fiz a primeira comunhão, me vestiram bonitinho, de branco, gravatinha e tal. Lá fui eu, me ajoelhei, tirei a fotografia, mas sem nenhuma fé.

E os guardiões? Eles estão presentes em sua obra só por estética?
Eles existem. Esteticamente e espiritualmente.

E neles você acredita?
Acredito. Não acredito num Deus onipotente, que manda em tudo etc. Já nos vários deuses que andam por aí, produzindo alegria, felicidade, essas coisas, neles eu creio.

Coração bifurcado cantando na encruza…

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.