Luciano Pires: “Você não precisa estar errado, basta que alguém ache que você está errado”

Em 2005, no começo de minha trajetória profissional, assisti à palestra de Luciano Pires O Meu Everest — também título de seu primeiro livro. Quase vinte anos depois, nossos caminhos se cruzam novamente num bate-papo informal acerca do universo corporativo. Em 2005, nem sonhávamos que se tornaria tão caótico, principalmente no que se refere à arte de se comunicar. Dada a nossa verve editorial cética — diriam alguns, pessimista —, a conversa a seguir não inspira, tampouco aponta um caminho. O palestrante ágil, inteligente e destemido, condutor do podcast Café Brasil, senta-se comigo no mirante do contemporâneo e suspiramos, juntos, diante da fogueira das vaidades ideológicas que reduz a cinzas as convivências. Quem sobreviverá? Façam as apostas!

Luciano Pires, escritor, palestrante e condutor do podcast Café Brasil.

FAUSTO — Como proteger-se de si mesmo?
Luciano Pires: Primeiro, você tem que se conhecer, o que pouquíssimas pessoas fazem. Todo mundo acha que “porque eu sou eu, eu me conheço”.

No ponto.
A busca do autoconhecimento tornou-se um mercado bilionário. Muitos profissionais ganham dinheiro porque as pessoas vão amadurecendo e, num determinado ponto da vida, elas descobrem que não se conhecem, não sabem do que são capazes, não sabem as reações que têm, e, por não saberem, são pegas pela insegurança, escondem verdades importantes de si mesmas e são péssimas para assumir compromissos com elas mesmas.

Principalmente no mundo corporativo, é importante que saibamos nossos pontos fracos e fortes como pessoa, e não apenas como profissional…
Quando você conhece a si mesmo, você sabe. O primeiro ponto, então, seria esse. Já o segundo seria a coragem de enfrentar aquilo que dói. Se sou incompetente para fazer tal coisa, não posso fazer; se sou ignorante em determinado assunto, não tecerei comentários a respeito. Como hoje em dia as pessoas querem aparecer, elas fingem que sabem. Agora com o chatGPT então… [Sorri]

A inteligência é um valor espiritual?
Não sei se ela é espiritual. O lado espiritual enriquece a inteligência, porque abre outra janela através da qual você olha as coisas por outra perspectiva. Conheço pessoas inteligentíssimas, mas que são bestas quadradas. São capazes de recitar de trás para a frente fórmulas matemáticas, processos, mas não entendem como o mundo funciona, não conseguem interagir. O espiritual ajuda a expandir um pouquinho nossa visão. Se aprendi que um mais um são dois, o espiritual ajuda a entender que às vezes tem que ser dois e meio. Então, não é que a inteligência é espiritual, creio que quando você adota a possibilidade de acreditar no que não dá para medir, naquilo que não sei se existe, mas que pressinto que exista, esse pressentir eu respeito, não é bobagem.

Considerar a intuição.
É. Aquela história da mulher ter um sexto sentido, é verdade. E tem tudo a ver com a transcendência. Quando você não transcende, torna-se um chato de galocha.

A superioridade moral é mais elevada no mundo corporativo do que nos embates políticos ou no próprio cotidiano fora da empresa?
Os americanos chamam isso de “virtue signaling”, sinalização da virtude. Você quer mostrar para todo mundo quão virtuoso você é. Todo mundo tem problemas, e eu tenho até uma tese de que quando você é muito genial em alguma coisa, uma genialidade que foge da média, ela consome sua energia, e de algum lugar você tem que tirar essa energia.

Por exemplo?
Um gênio absoluto na música pode bater na mulher. Um gênio na pintura se suicida, um gênio na literatura é agressivo, em algum lugar ele perde o equilíbrio. Então, as pessoas encontraram uma maneira de se colocarem num patamar superior dizendo que são virtuosas. A superioridade moral aparece em todo lugar, hoje em dia está tudo misturado, está uma bagunça.

A propósito dessa bagunça, tornou-se impossível escrever qualquer coisa nas redes que vá contra essa “superioridade moral”.
Numa de minhas publicações, contei a história de um professor norte-americano de uma universidade. Ele estava dando uma aula online de linguística e, como quase todo mundo, há cacoete, “hum”, “hã”, e daí o professor está falando sobre isso e interrompe o discurso e usa um exemplo chinês, porque ele morou na China, e cita uma palavra que quer dizer o nosso “né”. A palavra é alguma coisa parecida com “nia, niga”, em chinês. Daí alguns alunos negros acharam que ele estava falando “nigga”, de “nigger”, que é uma palavra proibida de ser falada em inglês — trata-se de uma ofensa racial muito ruim. Os alunos mandaram uma carta para a universidade e virou um caso mundial, foi uma confusão gigantesca. O professor foi acusado de racismo, abriram um processo contra ele, viraram a vida do professor de ponta cabeça. Ele ficou tão desgastado que parou de dar aulas. Por que estou contando isso? Você não precisa estar errado, basta que alguém ache que você está errado.

Essa minha impressão é equivocada?
Não, não. Creio que o mundo corporativo é um retrato da sociedade, mas não começou no mundo corporativo. Os departamentos de marketing estão invadidos por pessoas politicamente corretas. Se a empresa tiver mil pessoas elogiando a propaganda, mas quatro que escreverem falando mal, a empresa é capaz de mudar a propaganda inteira.

É como acontece no tratar mais íntimo.
Se eu chamo meu amigo de negão, desde que tínhamos dois anos de idade, e ele ama, porque sabe que quando eu o chamo de negão, quer dizer que eu o amo. Outros, que não fazem parte da relação, transformam numa afronta. Não podemos nos referir ao móvel como criado-mudo.

Quando entrevistei a Fafá de Belém abri a entrevista perguntando se ela se considerava um animal em extinção. Fiz consciente e com uma clássica referência. Ela, como uma mulher sábia e inteligente, não só entendeu o que eu quis dizer, soltando aquela risada maravilhosa dela, como disse ter sido “genial”. Mas calculei que poderia dar errado, partindo de algum leitor sem repertório…

Bom, em que momento devemos nos abster de emitir opiniões, sobretudo publicamente?
Rubem Alves tem uma frase deliciosa: “só fale se for para melhorar o silêncio”. Tenho como tese o seguinte: cale a boca até o limite da sua possibilidade. Você tem que ser econômico. Quanto menos eu falar, menos oportunidades tenho de falar bobagem. Outra frase, não me lembro quem é: “Quem fala muito, dá bom dia para cavalo”. Tem uma molecada nova aí, do marketing digital, que é um absurdo. Eles falam que você tem que publicar cem vídeos por dia. Está uma barulheira gigantesca, muita gente falando, e muita coisa que não tem nenhum valor.

Acaba sendo necessária uma curadoria. Eu mesma só ouço, leio ou vejo o que pessoas de extrema relevância para mim me indicam.
Você tem que nadar no meio disso para encontrar coisas que importam, esse é o grande desafio de hoje, na comunicação.

Que tipo de linguagem mata a comunicação?
A linguagem desrespeitosa. Confundiram informalidade com desrespeito. As pessoas não são capazes de entrar numa área de comentários e dizer, educadamente: “Luciano, não concordo com o que você disse, por causa disso, disso e disso”. As pessoas entram com ironias, xingamentos, destrói a comunicação. Destrói a comunicação dele comigo e destrói a do post inteirinho, porque vira uma rinha de galos.

O que vem antes do impulso de falar mal de um outro profissional, principalmente no LinkedIn?
Não sei que nome dar para isso, mas imagino um cara que cresceu jogando bola junto com o Francisco. Um dia ele viu o Francisco virar Papa Francisco. Ele fala: “Esse merda que jogava bola comigo, que eu enchia ele de porrada, esse cara virou o Papa, e eu sou esse merda”. Entendeu? No Brasil, as pessoas não aceitam que você possa ser tão bem-sucedido, enquanto elas não. Olha o Neymar, qualquer país do mundo queria ter o Neymar, o Brasil não. Olha o Pelé, morreu com uma quantidade de pessoas falando mal dele. Tomemos o Michael Jordan, ou um grande ator norte-americano, o valor que esses caras têm aqui. Se são brasileiros bem-sucedidos, deve ser de dinheiro roubado. A mulher de sucesso deve ter transado com deus e o mundo para chegar onde está. Então, isso criou um caldo cultural que leva a entender que é errado ser bem-sucedido.

Estou pensando se é ressentimento ou preguiça.
Acho que é tudo junto, viu?

Em quais situações não é possível voltar atrás?
Na morte. Morreu, acabou. Fora isso… Aliás, voltar atrás é uma atitude extremamente digna. Mas no ambiente corporativo, o que acontece? Quem volta atrás é fraco. Demonstra vulnerabilidade. Quando uma pessoa muda de ideia significa que encontrou algo melhor do que tinha.

Qual sua definição de poder?
Poder, para mim, é conseguir inspirar pessoas a fazer alguma coisa; a fazer qualquer coisa, não é nem dar ordens, mandar. Poder é impor respeito pela admiração, inspirar e fazer com que a pessoa siga por determinado caminho, porque ela acredita em você. Não importa a escala em que está no organograma. Tem um termo que uso: “liderança nutritiva”. Trata-se do líder perto do qual todo mundo quer estar, que quando chega, não me retraio. Quando ele chega, quero estar perto dele.

A vaidade é um monstro?
Não vejo problema nenhum em alguém ser vaidoso. Mas tem um grau: ou é remédio ou veneno. A vaidade é terrível quando passa do ponto, mas não é ruim pelo fato de existir, pelo contrário. Um homem ogro que se casa com uma mulher vaidosa, ela consegue impregnar a vaidade nele, esse cara está ganhando. Quando vem para a questão moral, a vaidade moral, “não vou reconhecer meu erro, porque estou certo”, isso é terrível, isso é um pavor, esse é o monstro, porque ele devora todo mundo, devora o vaidoso e quem estiver em volta dele. Você não pode anular a vaidade, mas ela deve estar sob controle.

Existe uma forma de tê-la sob controle?
Sim, com os afetos mais próximos. As pessoas certas do seu lado falam a verdade.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.