Madame Blavatsky — Amores Ocultos transpõe e preenche o tempo

Alguns de meus íntimos acham de mau gosto — deveras que sou das elegâncias — meu dizer frequente de que não desejo viver muito.

Assombroso?

Pois não foi que assistindo à peça Madame Blavatsky — Amores Ocultos, a atuação “mística” de Mel Lisboa levou-me a uma nova perspectiva de minha passagem na Terra, para além desse tempo que eu projeto?

O espetáculo, apresentado com o quase audível pulsar do coração da atriz, dispensa conjecturas sobre se tudo ali é encenado ou se há alguma “verdade” naquilo que conta e confessa.

Madame Blavatsky — Amores Ocultos brinca com esses limites entre o que é ficção e o que é realidade e apresenta a escritora russa Helena Blavatsky de uma forma, digamos, transcendente.

Exagero?

Não creio.

Em apenas sessenta minutos, Mel Lisboa alcança o que muitas peças — em minutos dobrados ou triplicados — não alcançam: a transposição do tempo de uma vida dedicada ao conhecimento, coisa de mais de um século, ao tempo exato de nossas ansiedades.

Ao tempo exato de nossas ansiedades.

Talvez as ansiedades humanas tenham sido sempre as mesmas, desde que o mundo é mundo, mas é verdade que o texto de Cláudia Barral não é uma soma de pensamentos, mas de sensibilidades. Quem assina a direção é Márcio Macena.

Adoraria poder contar como a ideia do espetáculo surgiu, mas faz parte da magia da experiência de assisti-lo. O que posso dizer é que Mel Lisboa realiza uma “incorporação mediúnica” do espírito de Helena Blavatsky e isso não é qualquer coisa.

O cenário criado também por Márcio Macena é de uma simplicidade que somado à iluminação de Lígia Chaim formam, juntos, uma atmosfera arrepiante, do tipo de arrepio que se sente diante de forças maiores do que nós.

Tenho dúvidas se “transcendental”, neste caso, seja apenas uma palavra metafórica.

Helena Blavatsky foi uma escritora russa, nascida em 1831, responsável pela sistematização da moderna Teosofia, além de cofundadora da Sociedade Teosófica.

Como não poderia ser diferente, sua história é cheia de controvérsias, intrigas e amores, mas nessa montagem, carrega muito mais do que amores ocultos. Assim, encafifei-me com o subtítulo.

Os elementos espiritualistas — estando Mel Lisboa “incorporada” ou não — nos deixam cada vez mais fascinados por essa figura que fascinou primeiro a Mel, numa circunstância bastante particular de sua vida, em 2020.

Clichê demais dizer que Helena Blavatsky foi uma mulher à frente de seu tempo. Porque não tem apenas a ver com atitudes de uma mulher independente, dona de si, mas sobre a autonomia e o poder de exercer com autoconfiança o exercício de pensar.

Como tudo tem seu preço, Madame Blavatsky carregou uma cisma de seu tempo tal qual — arrisco — Grigori Rasputin.

Portanto, além de independência, autonomia e o livre pensar, somam-se a sua trajetória o encontro, o diálogo e a fundição de religiões, filosofias e magias.

A criança Helena desde sempre era acompanhada por um rosto. Essas visões que não lhe pouparam estigma, dificultariam também um bom casamento.

Fato que se consumou. Na primeira oportunidade, no entanto, Madame Blavatsky fugiu do marido e foi cumprir seu destino viajando pelos cinco continentes.

Filha de aristocratas russos, de provocativa personalidade, seriam muitos os adjetivos para exaltar Helena Blavatsky: pioneira, visionária, o rosto da moderna espiritualidade esotérica. Mas nada disso importa, bem a verdade, enquanto a peça estiver em cartaz no Teatro Vivo.

Se podemos fazer um bem a nós mesmos, assistir à Madame Blavatsky — Amores Ocultos é uma pausa espiritual para os crédulos — e para os incrédulos, sessenta minutos de intervalo transcendental que transborda para a vida cotidiana do restante da semana.

Porque me acertou em cheio, Madame Blavatsky — Amores Ocultos preencheu meus vazios, construiu novos sentidos — uma reflexão sobre meu próprio tempo na Terra — e me levou a um relacionamento muito mais profundo comigo mesma, neste meu momento.

Confesso, me vi muito maior do que eu realmente sou, uma visão muito mais acolhedora da que faço de mim mesma todos os dias, ultimamente, que é tão presa a miudezas insignificantes.

Sendo assim, para além de mim, Madame Blavatsky — Amores Ocultos me permitiu ver o mundo de uma maneira mais ordenada.

Presenteie-se com esse espetáculo. Com um toque indispensável de Mel.

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.