“Ser ou não ser, eis a questão?” A pergunta que atormentou Hamlet sofre uma significativa variação em nosso tempo: Quem sou ou quem quero ser, eis a questão? Em seu novo livro Marketing Existencial, o filósofo Luiz Felipe Pondé coloca no centro do palco o personagem dos personagens de nossa era: o eu.
A mais importante peça de William Shakespeare é uma história de vingança e nela está a mais famosa frase da Literatura Universal. Contudo, não é apenas isso. É na tragédia shakespeariana que se revela a primeira luta do indivíduo para não ser. Uma luta ainda confusa, complexa, mas ainda assim uma luta. Sabe quando o bebê em gestação chuta a barriga da mãe pela primeira vez? Ser versus não ser é a disputa da autonomia contra a submissão. Posso existir independentemente ou faço parte sem escolha de um Todo?
Séculos mais tarde, cá estamos diante de uma discussão ridícula. O ser já tomou conta de tudo – e do todo. Hamlet, que antecipou o homem moderno, passou o bastão para Fausto que, por sua vez, deu a nós a oportunidade de existirmos do jeito que bem entendermos. É no Romantismo, contudo, que a natureza dá à luz a esse inescrutável, o eu, e liberta o homem de suas predestinações. Marketing Existencial fala então sobre a relação entre essa existência autônoma – fato, mas nem por isso bem resolvida, ou por isso mesmo mal-resolvida – e o consumo no século XXI. Vale ressaltar que não é um livro sobre marketing, mas sobre a existência.
Uma definição mais exata do que Pondé chama de marketing existencial consta em algum lugar das quase 200 páginas da viagem que propõe por alguns séculos, por grandes autores e por assuntos pouco refletidos em nosso tempo sobre religião, luxo, amor, entre outros. Marketing Existencial é uma aula sobre quem somos e onde estamos na escala do consumo em todos os aspectos de nossa vida, ainda que queiramos negar.
E isso é um elogio? Sem dúvida! Dos livros de Pondé para o público geral, é disparado o melhor desde Contra o mundo melhor, de 2013. Não falta ao ensaísta fôlego para articular ideias diversas e disposição para tornar pensamentos tão sofisticados em algo compreensível a todos.
O livro não é fácil, mas o esforço para compreender os conceitos apresentados será recompensado pelo prazer que só um pensamento fora da caixa é capaz de proporcionar. A exuberância intelectual de Marketing Existencial é o que torna a filosofia o mais delicioso manjar dos saberes. Verdadeiro malabarista das ideias, Pondé retoma a posição de um dos mais importantes pensadores do Brasil. O título sai pela elegante editora Três Estrelas.
Além de elogio, é também marketing existencial. Afinal, em qual outro momento filósofos ocuparam com tanto vigor os rankings de livros mais vendidos? Se o Romantismo reagiu à modernização e acabou se tornando produto dela mesma, este livro também é um bem de significado tanto quanto o seu antídoto.
Qual é o sentido de sua vida hoje? E, principalmente, qual será o sentido de sua vida amanhã? Você, eu, consumidores de significados, somos estes a quem Pondé diz que estarão fora do mercado afetivo, profissional e espiritual se não consumirmos tais bens. O típico cinismo pondeniano não falta e já nas primeiras páginas anuncia: “Não vou, de modo algum, ajudá-lo a ser feliz.”
Marketing Existencial dialoga muito bem com outro de seus títulos: A Era do Ressentimento. A brutal diferença entre eles é que torna impossível equipará-los, ou dizer que um é “continuação” do outro, principalmente quando o assunto é narcisismo.
Essa brutal diferença consiste que em Marketing Existencial o pensador parece analisar nossa era de dentro para fora, diferente do que faz em A Era do Ressentimento, quando parece analisar como observador mordaz, só de fora. Sendo o Romantismo a sua própria ascendência intelectual, as reflexões de Marketing Existencial se apresentam de maneira menos agressiva e mais profunda.
Quando vivemos em um tempo de saídas mil, que aplacam todo o tipo de angústia, o “Waze existencial-espiritual” indica o melhor caminho para viver bem. O filósofo, entretanto, alerta para a alta dependência dos produtos de significado:
“Produtos têm a vantagem de serem mais “confiáveis” do que seres humanos reais, uma vez que estes são dados a infidelidades, contradições e imperfeições constantes. Não há como fazer controle adequado do comportamento humano a menos que alguém esteja vendendo algo para você. O marketing existencial tem essa vantagem como ferramenta: colocar as pessoas em um vínculo de dependência pela instrumentalização que torna o comportamento humano mais passível de controle da qualidade de seus resultados. Se você aceita o que eu vendo, eu tenho melhor parâmetro para prever o que você faz.”
É, parece que a felicidade é mesmo para iniciantes, como Pondé anuncia na epígrafe. O desafio será o que fazer com as próprias angústias quando a leitura chegar ao fim.
Dedico ao meu professor, o historiador Martin Cézar Feijó.