Martin Cezar Feijó: “Enquanto Hamlet antecipa o homem moderno, Fausto o é em sua plenitude”

Ele visitou a casa onde Goethe morou, conheceu o seu túmulo, viu de perto onde algumas das histórias mais famosas da literatura aconteceram… O historiador Martin Cezar Feijó divide sua perspectiva de Fausto e relembra histórias verídicas, dignas de um livro de memórias. Doutor em comunicação pela USP e professor de comunicação comparada na FAAP, tem mais de oito livros publicados, entre eles O que é política cultural. Apaixonado por literatura e conhecedor como poucos dos grandes clássicos, Feijó é o convidado da vez desta série comemorativa de 1 ano de nossa revista. Levante sua taça, é hora do brinde! Confira o bate-papo descontraído a seguir.

Martin Cézar Feijó.

FAUSTO – O Fausto de Goethe representa exatamente o quê?
Martin Cézar Feijó: O Fausto de Goethe é o conflito do indivíduo com a sociedade. Goethe sempre se preocupou, em sua poesia e trajetória, em ser um rebelde, um rebelde contra a tradição, contra a sociedade, contra o absolutismo. Não é à toa que Goethe seja um escritor da época da Revolução Francesa. Não um adepto da Revolução Francesa, mas da transformação como tal.

E da revolução romântica também…
Ele prepara o caminho para o Romantismo. Goethe pertence ao movimento Sturm and Drang – tempestade e ímpeto – que é a coisa da explosão, da total manifestação de espírito.

É possível comparar Fausto com outro personagem?
Vamos comparar Fausto com Hamlet. Enquanto Hamlet tem um pé na tradição clássica, grega, e antecipa o homem moderno, Fausto o é em sua plenitude.

Por quais razões?
A ânsia de Fausto é a ânsia de conquistar o mundo. Não é à toa que Fausto seja um sujeito que vem da quiromancia, da magia, sempre no sentido da busca do conhecimento para transformar o mundo. Quando o diabo faz a aposta com Deus, Deus sabe que Fausto será facilmente conquistado. E Fausto, de certa forma, é mesmo. Quando é oferecida a ele a possibilidade de realizar todos os seus desejos – por isso o termo ânsia fáustica – o primeiro desejo é o da juventude. De um velho estudioso ele se torna um jovem belo. E ele passa a desejar e conquistar tudo: os prazeres da mesa e da cama. Só que nessa, a grande tragédia acontece quando ele conhece a pura Gretchen. Ela é o fator de desestabilização da própria aposta, mas também a possibilidade de redenção.

A obra vai na contramão do que era feito na época?
É interessante que Goethe, tentando recuperar uma trajetória clássica – mas sem ser clássico no sentido francês – ele se rebela contra as normas rígidas do classicismo francês, ele vai na contramão. Goethe recupera Shakespeare, no sentido da tragédia elisabetana. Nesse sentido, Fausto tem essa dimensão que é, evidentemente, propiciada pelo diabo. O diabo é aquele que faz o bem ao fazer mal. Ao provocar o excesso, ele acaba provocando a mudança. Ele acaba provocando a possibilidade de transformação. A segunda parte de Fausto, quando ele está desolado pela morte da Gretchen, porque nela ele encontrou o amor que ele nunca conheceu na vida de prazeres e realizações, ele vai se tornar um empreendedor, vai permitir o acesso para mais pessoas ao mundo novo que ele está construindo. Agora, a solução que o Goethe deu não contentou os católicos da época. Ele era panteísta, ele não era cristão.

Antes, era a religião que dava as certezas?
Sim.

 Quais são as principais características que marcam Fausto, nesse sentido?
São duas. A dor do mundo, que Freud vai chamar de sentimento oceânico, que é a ânsia em abarcar toda a dor do mundo e tentar curá-la, tentar correspondê-la; e a questão prometeica, que remete a Prometeu. Para Anatol Rosenfeld, Prometeu e Fausto foram totalmente condenados a definhar no cárcere do mundo, que é este mundo aqui. Inclusive, Fausto antecipa Baudelaire. Em Fausto há o desejo de transcender limites, tanto físicos quanto espirituais. Ele quer transformar a natureza, derrubar montanhas, abrir estradas, construir cidades. Por isso Marshall Berman considera Fausto como a tragédia do desenvolvimento. Ele está no desenvolvimento histórico. Essa dimensão ela acaba tendo um aspecto transcendente, divino, e não divino no sentido teológico, mas no sentido de superar a si próprio. Fausto não se questiona como Hamlet faz: ser ou não ser, eis a questão? Fausto é totalmente ser. Ele é um ser íntegro. Embora essa questão shakespeariana tenha Goethe como meta.

E o que seria isso, essas “soluções” que estão aqui neste mundo?
A transformação e o amor. Freud fala sobre isso em O mal-estar na cultura, que talvez o amor seja a solução ao mal-estar. O amor a este mundo, não o amor ao eterno, espiritual, ele fala do amor físico. O amor terreno se torna místico, nessa perspectiva.

Você conheceu a casa de Goethe?
Em 1987, eu era editor de cultura do jornal Voz da Unidade. Era um jornal do Partido Comunista brasileiro. Eu também era vice-presidente da Associação Bertolt Brecht, que era uma associação cultural de vínculo com a Alemanha Oriental, a Alemanha comunista, cujo presidente no Brasil era Fernando Peixoto, grande homem de teatro. Ele era o presidente e havia três vice-presidentes, eu era o mais “peixinho”. As duas outras vices eram Bete Mendes e Eva Wilma. Tivemos contato com Heiner Müller, o grande dramaturgo alemão; o Kurt Masur, renomado maestro alemão, enfim… Todo ano acontecia um encontro em Weimar. Iam representantes de associações culturais, coisa de comunista. Numa dessas viagens, o Fernando Peixoto não pode ir e eu era o quarto da lista, e acabei indo. Foram 20 dias na Alemanha Oriental participando de reuniões, de cursos. Weimar é uma cidade muito pequena, fiquei em um palacete que foi construído para um dirigente nazista da Turíngia. Fiz amizade com um padre franciscano peruano e ficávamos conversando sobre Goethe e Nietzsche. Resolvemos, em nosso dia de folga, ir ao Hotel Elefante, que fica no centro, que é o hotel que Goethe teria recebido a Carlota, cena do romance de Thomas Mann, Carlota em Weimar. A ficção gira em torno da antiga paixão de Goethe, os dois já velhos. Só que o hotel era um prostíbulo também. Sentamos numa mesa e pedimos um vinho. As moças ficavam fazendo streaptease, mas só até ficar de biquíni.

E o padre junto?
Sim, junto. Na hora de dançar com as moças, eu chamava o padre para dançar, mas ele respondia: “eu não danço, vai você”. E fui dançar com as moças… [Dá risada]

Quantos anos você tinha?
Eu tinha 37. Não rolava nada… O padre ficou na dele, não encostou em nenhuma mulher, ficou apenas se divertindo com o vinho.

E o que aconteceu depois?
Na manhã seguinte, no banho, que era coletivo, ficávamos separados apenas por boxes. Então o chefe da delegação alemã, que era da Stasi, começou a falar comigo, ele do box dele e eu do meu. Ele sabia que eu era do Partido Comunista e eles estavam putos porque rompíamos todas as formalidades. Os conservadores não davam trabalho, nós dávamos [Dá risada]. Aí ele falou assim: “soube que vocês foram ao Hotel Elefante, ontem à noite, é verdade?” Respondi que sim, e que tinha sido muito legal. Aí ele: “aquele lugar é uma vergonha, não conseguimos acabar com a prostituição.” Eu, crente que estava abafando, falei: “mas fui lá por motivos intelectuais, fui por causa do Goethe, do Mann, por causa de Fausto.” Ele respondeu: “motivos intelectuais são os primeiros sintomas da velhice.” [Dá risada]

Você foi ao túmulo de Goethe?
É, então, se fosse antigamente eu não poderia dizer isso… Acontece que a programação era muito chata. Era lavagem cerebral, coisa de comunista mesmo, um saco. Durante o dia era um saco, à noite nós tocávamos violão e tal… Não precisa ser chato para você mudar o mundo, entende? [Dá risada] Quando os caras começavam a falar de economia, eu me escondia no fundo da sala e saia de fininho. Eu ia até o túmulo do Goethe, que dava para ir a pé. O túmulo do Goethe fica ao lado do túmulo do Schiller.

Olha, que lindo!
Eu entrava na tumba deles e ficava sentado conversando com eles.

Conversando mesmo?
Sim, falando bobagem, da minha vida, a saudade da minha casa, da chatice que eram as palestras…

E eles responderam?
Não… Silêncio total.

Seria sensacional se eles tivessem respondido…
[Dá risada] Sim, eles teriam falado: “volta pra lá seu vagabundo!

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.