O dramaturgo romeno Matéi Visniec diz que o pensamento de Emil Cioran, o mais famoso filósofo romeno, é um pensamento que dá vertigem. Instigado, porém, pela maneira elegante e eloquente de Cioran refletir e escrever sobre o vazio – ou os vazios – Visniec dedicou ao pensador niilista uma de suas peças: Os desvãos Cioran ou Mansarda em Paris com vista para a morte, no Brasil publicada pela É Realizações. Com exclusividade para a FAUSTO, quando em visita ao país, Matéi Visniec fala um pouco mais desse guia espiritual de almas inquietas, mestre tão perturbador quanto irresistível – diga-se já, uma das pedras fundamentais dessa revista. Deleite-se!
Tradução: Flavio Deroo.
FAUSTO – Chama Emil Cioran de Drácula do pensamento. Por quê Drácula?
Matéi Visniec: Na peça Os desvãos Cioran ou mansarda em Paris com vista para a morte, um dos personagens é mostrado extremamente irritado por causa do niilismo filosófico de Cioran. Quando o personagem começa a insultá-lo e chama-o de “Drácula do pensamento”, ele está reprovando o seu “vampirismo espiritual“. Drácula, como sabemos, foi inventado por Bram Stocker. É um personagem complexo, cheio de escuridão, um príncipe da Transilvânia que por acaso é vampiro. Os vampiros sugam o sangue de suas vítimas, o que lhes proporciona prazer, e é até uma estranha forma de vício. Cioran tem algo de “vampírico“. Podemos não concordar com o que ele diz, mas amamos a maneira como ele diz.
Sua escrita é elegante…
Seu lado cínico, pessimista, niilista e desiludido desperta ansiedade. Podemos recusar suas ideias e conclusões, mas ao mesmo tempo somos cativados por seu estilo, por sua maneira de compor aforismos, com seu estilo elegante. Cada sentença de Cioran passa por uma longa destilação reflexiva. É como um perfumista que utiliza tonelada de pétalas de rosas para obter, após tratadas em vários alambiques, dez gramas de perfume. Cioran “destila” sua mente e entrega o produto final, a sutil conclusão de um longo processo de amadurecimento espiritual. É impossível não gostar do estilo de Cioran, mesmo se nos recusarmos ao conteúdo.
E tem o fato de Cioran ter nascido na Transilvânia também…
Cioran – que se tornou um grande escritor francês – nasceu na Transilvânia, no tempo em que a região fazia parte do Império Austro-Húngaro. A parte da Transilvânia habitada por romenos foi integrada ao Estado Romeno apenas em 1918, após a Primeira Guerra Mundial.
O que o levou a escrever uma peça sobre Cioran?
Fiquei intrigado e fascinado por Cioran. Ele é um filósofo atípico, que se recusou a construir um sistema e odiava a mídia. Hoje, filósofos dão entrevistas todas as semanas e aparecem na TV como estrelas de cinema. Cioran nos encanta pela falta de soluções, mas ele sabe fazer as perguntas certas. O apelido “vampiro” é uma metáfora que merece, sem dúvida, mais esclarecimentos, mas é preciso ler Cioran para compreender todas as nuances desse jogo de palavras.
Há mais razões?
Ele também me impressionou por seu destino, porque morreu de Alzheimer. Quando um grande filósofo perde sua memória, é como se a humanidade também perdesse. Como muitos outros autores e artistas, Cioran encontrou na França um refúgio e na língua francesa uma janela para a universalidade. Mas essas são apenas algumas razões pelas quais dediquei esta peça a ele. Devemos salientar também que ele é o filósofo romeno mais famoso internacionalmente.
Escrevi em um artigo que em Cioran “me organizo”. Creio, de verdade, que ele possui esse “poder organizador“, porque ele vai ao limite e nos leva ao limite. Mas ir ao limite é mesmo “organizador“ ou pode ser bastante perigoso?
Cioran não incentiva ninguém ao suicídio. Aliás, ele mesmo disse isso. Mas ele nos leva a pensar sobre nossa incapacidade de compreender o homem, o destino e a história. Para Cioran, a chegada do homem na Terra é tanto um acidente quanto um erro. Ao mesmo tempo, Cioran é confiante na linguagem. Ele sabe que se nos investigarmos profundamente, no abismo dos conceitos, podemos ter revelações, podemos nos aproximar de certas verdades. Hoje, Cioran é frequentemente citado nas universidades e em muitas obras literárias. Conforme o tempo passa, mais ele se torna uma referência espiritual. Isso acontece porque ele não rouba. Ao se recusar a dar esperança filosófica, ele se torna mais honesto do que todos os gurus das ciências sociais. Mas, de novo, além do desespero, da ironia incômoda e de seu fatalismo, há uma luz: em Cioran há o prazer de pensar.
A vida é um grande nada?
A vida é um grande mistério que deve ser apreciado em todos os momentos. E nós podemos preencher esse vazio usando a criatividade. É por isso que pensamos, escrevemos e criamos obras literárias e artísticas, é para preencher esse vazio original.
As Artes são manifestações de Deus ou são predominantemente terrenos do Diabo?
Nem Deus nem o diabo inspiraram meu trabalho de poeta, de dramaturgo ou de romancista. É o homem que me inspira, por causa de suas contradições, que às vezes pode ser divina e outras vezes diabólicas. Meu personagem é o homem, com tudo o que ele sofre da sociedade e com tudo que ele inflige à sociedade. Acredito no homem, acima de tudo, e escrevi um monólogo sobre essa forma de utopia, que se chama As parábolas de Jó. Eu poderia citar Nietzsche também, que disse que devemos agir como se o progresso existisse. Sim, devemos viver como se o amor existisse, como se as soluções existissem, como se a vida tivesse significado, como se a generosidade dos homens fosse uma realidade, como se a luz fosse capaz de nos guiar no escuro. Senão, precisaríamos nos suicidar desde o nascimento.
Qual é o antídoto para o niilismo?
O trabalho. Temos que construir, criar, imaginar, falar com os outros, ouvir o mundo, deixar um rastro na terra ou na mente das pessoas, mas especialmente no coração.