Mel Lisboa é grave. Que excelente definição! Um paradoxo, desafia sua própria aparência e seu tom de voz. Portanto, a grande atriz do teatro, já com 22 anos de carreira, desorienta quem se põe e impõe diante dela. O corpo frágil não determina sua ferocidade, sua voz doce não esconde posicionamentos férreos; e como não poderia ser diferente, sua sensualidade não é frívola. Diante de meus abismos, com exclusividade, Mel se abre para refletir sobre o futuro. O que será de nós, mulheres à frente do tempo? Ou somos apenas mulheres que se ocupam do próprio tempo? A mítica fêmea, mentirosa profissional, abre algumas de suas verdades e deixa subentendidas outras tantas nas abas abertas de sua mente diante de FAUSTO. Ou seria, desta vez, diante de Mefisto?
FAUSTO — Se hoje você se percebesse velha e sozinha, sentada no meio do banco de uma praça, quais momentos recordaria como tendo estado inteira em sua própria vida?
Mel Lisboa: Eu me lembraria de alguns trabalhos, da minha família, de momentos em que… Como é mesmo aquela frase do Guimarães Rosa? “Felicidade se acha é em horinhas de descuido”. Há momentos simples, mas que me sinto plena: às vezes assistindo a um filme com meus filhos, quando estou com minha mãe, pois tenho uma relação muito intensa com ela, ou simplesmente relaxando. Nesses instantes acho que estou inteira… Nossa, não sei, é difícil escolher, estou escolhendo por grandes áreas…
Já fiz esse exercício e é difícil mesmo, porque primeiro é necessário se sentir inteiramente sozinho, para aí então conseguir selecionar esses momentos exatos, que são poucos, para quase todo mundo…
Minha avó, que morreu aos 98 anos, numa das últimas conversas que tive com ela — e ela era muito lúcida —, ela falou sobre se sentir só, apesar de ter filhos, mas os filhos têm filhos, que têm filhos, suas próprias vidas, enfim. Senti o mesmo numa fala da Fernanda Montenegro quando estivemos juntas numa premiação em que ela estava sendo homenageada. São pessoas muito diferentes, minha avó que teve uma vida simples e a Fernanda Montenegro! Mas a solidão estava ali, nos dois relatos. Não sei, acho que eu ia querer morar nos meus amores, porque somos feitos de encontros. Sentir-se só é bastante angustiante porque são os encontros que nos moldam e que nos fazem ser quem somos.
Quando pensa nesses momentos em que se sente inteira, saberia me dizer o quanto isso lhe custou?
Estar inteira, para mim, é algo muito difícil, muito difícil mesmo. Tenho dificuldade de estar inteira em todos os aspectos de minha vida. Minha mente abre muitas abas, nunca consigo estar completamente num só lugar, num só pensamento. Normalmente, divago. Estou ali, mas pensando em outras coisas, ligada em outros movimentos, pensando no que terei que fazer, por isso também tenho dificuldade para dormir. Sou uma pessoa muito agitada. Então, estar inteira, estar plena num momento em que eu possa falar: “nossa, agora estou aqui 100%”, é muito raro, muito raro.
E, curiosamente, você faz teatro…
O teatro é um lugar em que sou obrigada a estar presente, porque é o lugar do imponderável, e talvez por isso eu goste tanto de fazer teatro, porque sou obrigada a estar presente quase que 100% — não digo 100% porque nada é 100% —, e porque tudo pode dar errado numa fração de segundo. Trabalho muito para estar concentrada, tento fazer yoga, respirar fundo, fazer coisas que me deixam em estado de concentração. Às vezes me programo para conseguir ficar sozinha por um tempo, mas é muito difícil para mim.
Quando pensei nesta cena — você velhinha e solitária — foi porque nesta fase da vida falta um corpo para viver outras coisas (e estar em movimento pode nos fazer não pensar se estamos inteiros ou não em nossa própria vida); ou seja, estamos falando de condição física e emocional extremas, em que é impossível não remoer, reviver, repassar, repensar…
Acho que sim, talvez isso faça sentido, ter perdido momentos de inteireza… Talvez eu sinta falta de algumas coisas e me arrependa de não ter conseguido estar inteira em momentos que foram importantes.
A fama é mais uma busca pelo sentido da vida ou um roubo do sentido da vida?
A fama é consequência de um determinado tipo de trabalho e exposição, que pode acontecer ou não, e que é uma faca de dois gumes. Tem coisas boas e coisas muito ruins. É preciso ir criando essa consciência, tentando entender como a fama funciona e não se deixar afetar, tanto pelas críticas quanto pelos elogios. Sou uma pessoa que está sempre em busca de melhorar meu trabalho, ir atrás de desafios, porque sou assim e vou morrer assim. Nunca vou estar num lugar confortável, nunca vou chegar no meu ápice, nunca. Então, sei que não posso me deixar afetar por críticas negativas, nem por elogios rasgados, porque isso pode me afetar em minha busca.
Quais são os prós e contras da fama?
Há algumas vantagens, que são ótimas, inclusive para o próprio trabalho, porque ajuda a conquistar mais trabalhos, pensando de forma pragmática. Por outro lado, pode acontecer esse roubo do qual você está falando, do sentido da vida e tal, de quem você é. Lembro-me de quando a Rita Lee me falou acerca dessa persona Rita Lee, que está ligada à fama, mas que havia a Rita, que é ela, que é essencialmente ela. É muito possível se confundir com a imagem que criam de nós — ou que criamos de nós mesmos.
Quando essa imagem é boa, você a adota…
Claro, é confortável, massageia o ego, ficamos lisonjeados, mas é muito sedutor e perigoso. Tento deixar meus pés no chão.
Faz terapia?
Faço.
Não por causa da fama?
Não, faço porque preciso. [Dá risada]
Porque não dormimos…
É, porque não dormimos. Porque não durmo, porque sou humana e erro, e muitas vezes não sei o que fazer da minha vida. Então, um olhar de fora, treinado, me ajuda a enxergar meus caminhos de forma mais nítida.
Mantém algum cuidado espiritual com seu corpo?
Faço yoga para fortalecer, alongar, mas também para me fazer respirar direito. Às vezes, me percebo em apneia, de tanta ansiedade, cheia de pensamentos. Respirar me ajuda a focar um pouco mais, entrar num estado mais meditativo, mas ainda em atividade. Meditação sozinha, parada, não consigo. Algo que fiz, que tem a ver com espiritualidade do corpo, e porque percebi que não me fazia bem, foi parar de fumar. Eu tinha taquicardia. Taquicardia é o que tenho quando estou no palco, quando vou estrear uma peça, que é um tipo de crise de ansiedade.
Tem taquicardia sempre?
Tenho todas as vezes, todas.
Sei como é, todas as vezes que vou publicar um texto parece que estou morrendo…
Tenho falado exatamente isso, que é uma sensação de morte. Acho que vou morrer [Dá risada].
Considera-se uma artista sombria?
Sombria?
Ou uma palavra equivalente.
Acho que sombria não, mas sou séria, às vezes sou séria demais. Com os anos, aprendi a me levar um pouco menos a sério, porque sei que isso é importante para minha saúde mental, mas sou séria, sou intensa, sou grave. Grave, acho que é isso!
Grave é uma palavra ótima!
Às vezes os acontecimentos de minha vida tomam uma proporção que tenho que trabalhar muito em minha mente.
Inclusive para não afundar…
É… para não levar tudo tão a sério. Já tive alguns trabalhos que precisei mentalizar: “tudo bem se não der certo, não vai ser o fim”.
Madame Blavatsky determinou uma era em sua vida?
Sim, principalmente porque é meu primeiro solo e de minha produção. Ganhei essa peça da Cláudia [Barral], abracei esse presente e resolvi investir. Então, é um marco na minha vida pessoal e profissional. Como é uma peça atemporal, sempre que for possível farei uma nova temporada ou turnê. Posso ser a velhinha do banco sozinha, só que no palco, fazendo a Blavatsky. [Dá risada]
Todo o caminho dessa pauta foi devido à Madame Blavatsky mesmo, a peça me tocou muitíssimo, despertou-me uma centelha do sentido da vida… Bom, mas como foi a imersão na obra da escritora russa?
Não li sua obra completa, mas tentei. Estudei comentadores também, a própria Lúcia Helena Galvão.
Mantém uma relação espiritual com objetos?
Porque na peça tem isso, né? A coruja…
Sim, você tem isso? Eu tenho…
Acho que não, sou até bem desapegada, para ser sincera. A única coisa de que não consigo me desapegar são meus livros. Agora, que acabei de me mudar, enquanto ia desencaixotando os livros eu pensava: “gente, para que tantos livros?”.
Quais são suas preferências?
Destaco dois autores brasileiros: Clarice Lispector e Machado de Assis. Gosto muito deles! Mas tem muitos outros. Tenho lido muita literatura contemporânea brasileira, que está com uma leva muito boa de autores.
O que você ama apenas porque é bonito?
Tenho muitos hábitos estéticos, e em relação a tudo. O belo, que não é necessariamente o belo do senso comum, é importante em todos os sentidos; do sentido mais físico, do lugar onde estou, por exemplo, onde moro; passando por sensações.
Em algum momento sua vida já lhe foi roubada?
Sim, quando fazemos terapia percebemos. Percebemos onde não tivemos chance de ser nós mesmos, de poder nos desenvolver porque alguém, ou alguma coisa, impediu, e acabamos desenvolvendo traumas, medos…
Insônia…
Insônia. A maioria das pessoas passa por isso, faz parte da vida, não sou diferente, também vivi encontros e desencontros que senti que não pude ser eu mesma, ou que fui obrigada a tomar outro rumo, fazer escolhas que não seriam as minhas escolhas.
É mais difícil de lidar quando você descobre esse roubo somente muitos anos depois?
Talvez. Porque não há mais o que fazer, e a ferida está lá e é preciso lidar com ela, mas como lidar com ela? Como lidar com o rancor? Ser resiliente e falar: “não, é isso mesmo, e foi esse fato que fez eu ser quem sou”? Recentemente, passei por esse processo e me vi rancorosa, mas aceitei esse rancor, não tentei lutar contra ele, porque seria inútil. Não adianta esconder o que sentimos, e podemos transformar esses sentimentos. Tento me perdoar desse meu rancor, sabe? [Sorri]
Perdoar-se por sentir rancor?
Sim, por não ter a nobreza de espírito para relevar ou de enxergar de uma perspectiva mais otimista. Sinto tudo muito profundamente. Trabalho isso em terapia, minhas forças, minhas potências, porque tenho forças e potências muito destrutivas e agressivas, embora não pareça.
Canalizar essas potências…
Elas podem servir para coisas boas, coisas que não sejam destrutivas, mas para isso é preciso ter consciência. Por exemplo, a agressividade que tenho, sou uma pessoa bem agressiva, não uso essa agressividade na minha vida, eu a desloco, faço dela uma força.
A raiva é uma fonte de energia inesgotável.
Sim. Aprendemos a usar a raiva, a agressividade, o rancor como um pedal que pode proporcionar mais força.
Já roubou a vida de alguém?
Pergunta difícil. Não sei. Olha, acho que já…
É difícil também se colocar nesta posição.
É difícil se olhar no espelho e ver em você características que condena. Esse espelho é cruel às vezes, e isso já aconteceu comigo, percebi que eu não estava fazendo bem para uma pessoa, e é duro, sabe? Não sei se já roubei a vida de alguém — talvez seja muito —, mas posso ter roubado momentos, e é ruim perceber isso, me sinto mal, porque não queria ter que me ver no espelho e ver aquilo que recrimino. É igual quando olhamos para nossos pais. No meu caso, meu pai faleceu no ano passado, tenho muitas características parecidas com as dele, e é genético, porque não fui criada por ele, minha mãe foi mãe solo, então não tem uma questão de convivência, mas, curiosamente, ele era artista e também sou. Quando eu via nele coisas que eu achava horrorosas, percebia também que eu era igual, e aquilo me fazia muito, muito mal. Mas é preciso trabalhar a questão. E haja terapia.
É possível amadurecer sem sofrer?
Acho difícil. Não sei se impossível, porque, talvez, nada seja impossível, mas é improvável. Faz parte do processo de amadurecimento os erros, as dores, os fracassos. Embora nunca queiramos sofrer, estamos sempre fugindo da dor, não adianta. O amadurecimento é fruto de nossas experiências, e as experiências fazem parte do todo, e no todo estão as dores também.
Como é a perfeita solidão?
É preciso muito amadurecimento, viu? E um bem-estar muito grande consigo mesmo, em relação a si mesmo e ao mundo, de aceitar e de ser generoso com suas qualidades, com seus defeitos, com suas escolhas, seus erros, seus acertos, lidar bem com tudo isso. Acho possível, embora difícil. Muito difícil. Eu, por exemplo, sou uma pessoa que não pratica a solidão. Às vezes fico só, mas são momentos rápidos, normalmente tenho pessoas comigo, amigos, filhos. Cerco-me de pessoas. Para mim, a solidão é difícil. Admiro quem gosta de ficar sozinho, quero chegar lá um dia, acho que sou muito carente, talvez. Conheço muitas pessoas que ficam bem sozinhas, que gostam, minha mãe é uma delas, eu admiro muito, mas, para mim, teria que trabalhar.
Faz parte da cena que abre nossa conversa: se perceber velha e solitária.
É importante pensar nisso, porque é inevitável. Se quer ter uma vida longa, é inevitável. As pessoas vão saindo de sua vida e é preciso lidar com isso. Então, essas questões, acho que estou trabalhando aos poucos. Agora, que estou um pouco mais madura, meus filhos já estão um pouco maiores, depois de muito tempo dividindo casa, agora tenho a minha casa, quem saiba um dia eu consiga, talvez eu chegue lá.
Para mim, a perfeita solidão é quando me percebo completamente livre da necessidade da mentira. E vivo isso, sabe?
Acha possível não haver mentira?
Acho. E isso torna a solidão menos pesada.
Isso realmente é libertador, é libertador.
É como me sinto quase todo o tempo. Lógico, tenho pouca necessidade de convívio social, então entendo o privilégio…
É uma paisagem muito boa, porque ela é difícil, ela é difícil de chegar, porque vivemos com mentiras o tempo inteiro, precisamos viver em sociedade, e por mais sincero que você seja, por mais honesto que seja, em alguns momentos você é obrigado a dizer pequenas mentiras, ou fazer pequenas omissões.
Omissão é outra história. [Dou risada]
Vivendo na solidão, dá para não mentir, porque você não precisa se relacionar com o outro; e, sendo sinceríssima, é preciso mentir. Falo isso do ponto de vista da minha carreira: são 22 anos de trabalho profissional como atriz, comecei aos 8 anos no teatro, passei por vários métodos, diretores, estilos, processos; passei por muitos processos. Hoje, acho que o mais legal é a mentira. Costumo falar que sou uma mentirosa profissional. Sou como o fingidor de Fernando Pessoa. Não estou sendo arrogante não: “O poeta é um fingidor. /Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. É o que faço todos os dias. Não é que eu não sinta, eu sinto; mas eu finjo sentir, e a graça é essa, porque quem tem que sentir é quem está me assistindo, não eu. O ator é o grande fingidor. Minha profissão é mentir, finjo ser quem eu não sou o tempo inteiro. Essa é a graça. Então, é isso: minha profissão é uma grande mentira. [Dá risada]