A inigualável experiência sensorial do livro perde-se cada vez mais à medida que as telas ocupam todos os espaços — do computador no trabalho ao celular no quarto de dormir.
A leitura ganhou outros formatos, a exemplo do Kindle, cuja capacidade de armazenamento de diversas obras torna a vida do leitor muito mais prática, sobretudo na locomoção do dia a dia.
Mas os bons leitores hão de concordar que o contato com o livro torna o ato de ler mais contemplativo: sentir o papel, os detalhes e a textura da capa, fazem com que a obra lida se transforme em um universo à parte na qual imergimos.
E, ao final — levando em consideração que o nobre leitor consuma bons livros —, saímos diferentes em relação àquele que começou a leitura. No mínimo, reafirmamos quem já somos.
Se a inteligência artificial é um caminho sem volta, a humanização tende a ser cada vez mais uma demanda vital: urge a necessidade de reconhecermo-nos como seres humanos numa era de algoritmos. E essa busca pela nossa essência passa necessariamente pelos livros.
Esse empenho foi reforçado pela inauguração, na capital paulista, do Museu do Livro Esquecido.
A escolha da casa para abrigá-lo se justifica, já na entrada, pela arquitetura: uma residência eclética ao estilo florentino, concluída no longínquo ano de 1924.
Essa construção centenária foi realizada pelo arquiteto ítalo-brasileiro Felisberto Ranzini, onde residiu até a sua morte, aos 95 anos, em 1976.
Situado próximo às estações de metrô Sé e Liberdade, na Rua Santa Luzia, o casarão se destoa do restante da paisagem como uma reminiscência de uma São Paulo de outrora.
Se o ato de preservar é uma batalha perdida contra o tempo — como bem observou o guia do museu —, a tentativa não é em vão.
A primeira exposição da casa, intitulada “A Solidão e a Escrita”, aborda a vida e obra de três escritoras: Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Teresa Margarida da Silva e Orta (1711-1793) e Christine de Pizan (1363-1431).
Se hoje, de certa forma, foram esquecidas pelo grande público, essas três mulheres, em eras distintas, foram vanguardistas — cada qual à sua maneira.
Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo, livro em que aborda sua vida na favela do Canindé, na cidade de São Paulo, enxergou a escrita como uma possibilidade de reescrita da sua própria trajetória.
E conseguiu: uma mulher negra com apenas dois anos de ensino formal deixou seu legado registrado para sempre na nossa história.
Teresa Margarida da Silva e Orta, que passou grande parte de sua vida em Portugal, é considerada a primeira romancista nascida no Brasil, sendo As Aventuras de Diófanes sua obra mais conhecida.
A italiana Christine de Pizan, que viveu no período medieval, foi a primeira escritora profissional do Ocidente — ou seja, viveu da própria literatura. Em A Cidade das Damas, a autora, auxiliada pela Razão, Retidão e Justiça, construiu um local habitado por mulheres virtuosas.
E é com essa tríade feminina que o Museu do Livro Esquecido deu os primeiros passos, com perspectivas muito animadoras para amantes e profissionais do livro.
A casa pretende estabelecer um laboratório de restauro de livros em seu porão, dentre outras atividades editoriais.
Experienciar esse trabalho de resgate em uma metrópole como São Paulo, em que o velho quase sempre é preterido pela inovação, renova as esperanças por mais iniciativas como essa — para além de capas e páginas, a restauração passa pelo espírito.
O intelectual alemão Dietrich Schwanitz diz que “somente a escrita liberta a linguagem da situação concreta e a torna independente do contexto imediato”.
E o meio para isso são os livros: preservá-los é o mesmo que nos salvaguardar como seres humanos.
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