Durante o espetáculo Norma Bengell, o Brasil em Revista, estrelado por Amanda Acosta, algo me chamou mais a atenção do que a própria encenação.
Logicamente, não por desprezo aos artistas. Ao contrário, é justamente pela magia que todos eles criam em cada sessão.
O que me chamou a atenção, portanto, foi a plateia. Majoritariamente formada por pessoas que viram Norma Bengell em seu auge, ela cantava junto, se emocionava de verdade e, mais impressionante, via em Amanda um retrato doce da própria diva bem mais acre.
Para qualquer espectador apaixonado por cultura, Norma Bengell, o Brasil em Revista é uma deliciosa aula de história. Daquelas em que somos capturados pelo dom do professor de nos transportar através da narrativa — e de sua paixão pelo ofício de ensinar.
A trajetória de Norma se entrelaça à da cultura brasileira. E, de uma forma muito sutil e profunda, à maneira como crescemos quando nossos pais eram esses jovens, como Norma, que tiravam do rádio e do cinema a inspiração para sonhar — ou o suspiro profundo, depois de um dia exaustivo de trabalho.
Não vi Norma Bengell em seu auge. Entretanto, como uma apaixonada pela memória cultural deste país, saí apaixonada pelos apaixonados.
Sim, este texto é para vocês: Alexandre Brazil, idealizador do espetáculo, e Aimar Labaki, autor e diretor da peça.
Melhor condutora não haveria, posto que Amanda Acosta tem um carisma inquestionavelmente aconchegante. Conseguimos passar horas olhando para ela, sem nos cansar.
Os demais atores são, de igual modo, excepcionais: Letícia Coura, Luciana Carnieli, Luciana Ramanzini, André Hendges, Mauricio Xavier e Paulo de Pontes.
A banda — formada por Ana Eliza Colomar, Chico Botosso, Demian Pinto, Gui Calzavara e João Botosso — contou com a direção musical de Gustavo Kurlat. As 32 canções ecoavam pelas vozes saudosas dos que estavam sentados atrás de mim.
Acho que foi assim: eu estava na primeira fila de Norma Bengell, o Brasil em Revista, olhando para o palco, mas assisti mesmo — através dos sentidos — àquilo que acontecia na plateia, atrás de mim.
São duas horas de espetáculo, mas a sensação é de ser mais, pela riqueza do texto.
Se lhe causa algum constrangimento não saber quem foi Norma Bengell, a resposta jamais estará no silêncio.
Norma Bengell foi uma mulher antes que tudo o que ela fez fosse permitido a uma mulher. Foi atriz antes que lhe dessem um papel. A direção de um filme, tomou para si sem pedir licença.
Amou sem pedir licença.
Norma Bengell começou sua carreira como modelo, brilhou como vedete, cantou como Juliette Gréco — mas nada disso a definia.
Com pudor, diante de uma cena de beleza estética monumental, encenou despudoradamente. A cena é emblemática — e está em Os Cafajestes. O primeiro nu frontal de uma mulher no cinema nacional.
Arrisco pensar que os homens da plateia se lembrem ainda do mistério poderoso que aquilo provocou. Em meu tempo, soa pueril. E triste. Com o fim do mistério se vai a vontade de preservar a memória.
Bom, foi assim que Norma Bengell ganhou o título de musa do Cinema Novo. Ela atuou ao lado de Glauber Rocha, Cacá Diegues — sem nunca se sentar à sombra deles.
Norma Bengell também viveu grandes amores: Alain Delon, Gilda Grillo, Agildo Ribeiro — nomes impossíveis de se ignorar.
Todos os grandes nomes com os quais a biografia de Norma Bengell é bordada vão sendo apresentados com leveza, humor e simplicidade.
Em seus últimos anos de vida, ela passou sozinha. Morreu em 2013, vítima de câncer no pulmão. Essa existência miserável, que pode nos dar toda a glória do mundo, não deixa de cobrar um fim trágico — porque até a arte é expiação.
No entanto, assistir Norma Bengell, o Brasil em Revista é perceber que, a despeito de tudo, viver é criar, é cantar e amar ao criar. E a vida pode passar sem que percebamos isso.
E, às mulheres, viver é criar e ser amada!
Que Norma Bengell, o Brasil em Revista seja um elo entre gerações. Que os avós levem seus netos ao teatro. Que ensinem, diante de interpretações tão delicadas, que a cultura é um valor que não se perde no tempo. E não se muda quando mudam os formatos.
Norma Bengell contou histórias. Antes, todavia, ela provocou histórias.
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