O Pássaro na Gaiola: a questão é a alma

O Pássaro na Gaiola, em cartaz no Teatro Estúdio, traz como protagonista Renata Vilela, que dá vida à escritora Ruby.

A solidão do escritor é um estado paradoxal.

Ao mesmo tempo em que leva à expansão da mente, sobrecarrega com a dualidade do silêncio existencial — que sem ele também não é possível mergulhar na essência do ser, matéria-prima do escritor.

A solidão é uma mãe de caráter dúbio, que acolhe, mas espezinha; propicia espaço de criação, mas provoca confrontos internos.

Escrever é entrar em contato com fenômenos desconexos dentro de nós, e que muitas vezes não combinam com nosso talento de transmutá-los para o papel.

No contexto de uma literatura feita por negros, essa solidão é aprofundada pela impossibilidade de pertencimento com o entorno.

O vazio de sentido, no entanto, não enxerga cor da pele.

No pêndulo emocional áspero sobre o qual todos nós nos seguramos com uma só mão, o vazio de sentido não considera nada além de ter alma.

A questão é a alma.

E quem sabe mais da alma do que aqueles que sofrem do que chamo de “desprezo lírico”?

Não desprezo porque não prezo, desprezo para provocar sentimentos de descuido.

O cuidado é o elo.

É inquestionável que escritores negros ocupem um espaço essencialíssimo nessa arte-reduto, a escrita, sobretudo por apresentar perspectivas apropriadas sobre identidade e resistência. Carolina Maria de Jesus que o diga, e diz Ruby, a personagem.

Grandes obras, ao longo de toda a História, ainda desafiam estereótipos, revelando histórias silenciadas e oferecendo uma rica diversidade de vozes. Maya Angelou que o diga, e diz Ruby também.

Escritoras negras — como mulheres negras em geral — lutam por reconhecimento e algumas, como as citadas no espetáculo O Pássaro na Gaiola, inspiram gerações a continuar expressando suas verdades.

A personagem, inspirada em personalidades como Ruby Bridges — primeira criança negra a frequentar uma escola primária branca no Sul dos Estados Unidos; e Maya Angelou — primeira mulher negra a aparecer numa moeda de dólar —, encontram força para reescrever suas respectivas histórias num contexto desse “desprezo lírico”.

O algoz se mune de vulgaridades. Seu desejo é que o rosto da vítima se mantenha cabisbaixo.

Dirigida e produzida por Arlindo Lopes, com dramaturgia de César Mello, O Pássaro na Gaiola mescla elementos fictícios e reais dessas grandes mulheres que, não diferentemente de outras anônimas, são desprezadas de maneira que se mantenham com os sentimentos apequenados.

A história de O Pássaro na Gaiola se passa em 1987, vinte anos após a morte de Martin Luther King Jr. Ruby acaba de receber a notícia do falecimento de James Baldwin, que foi mentor de Maya Angelou, por sua vez, referência-mor da personagem.

A notícia desencadeia uma onda de lembranças pungentes em Ruby, que a leva a repassar sua trajetória.

Nessa receita de ingredientes biográficos, o prato dramatúrgico é agridoce. No entanto, o longo adocicado que fica depois do apagar das luzes dou crédito à Renata, cujos olhos brilham de forma encantadora.

Será porque ela tem alma?

Sua voz é de um acolhimento de ninar. Convida ao ninho, às favas a cor da pele, todos são bem-vindos.

A questão — sempre — é a alma.

Em O Pássaro na Gaiola há não só referências históricas, mas também elementos da própria biografia de Vilela — por exemplo, sua passagem pelo balé clássico e pela dança contemporânea.

O moderno Teatro Estúdio ofereceu uma moldura atraente para o cenário fundamental assinado por Teca Fichinski.

Os figurinos de Tereza Nabuco também chamam a atenção, embora o verdadeiro encanto, o qual corrobora minha teoria da alma, aconteça nos segundos à margem da cena.

Refiro-me à troca de olhares entre Renata e Ana Preta, a camareira, quando a auxilia na troca de figurinos diante do público.

A questão é a alma. A redenção é o encontro das almas.

A liberdade dos pássaros é o pertencimento de seus lugares.

Deles são o céu.

Dos negros, os palcos, os holofotes, os livros, os quadros, os púlpitos, todos os lugares que simbolizam o céu.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.