Os Arrais e o sentimento oceânico

Sabe o sentimento oceânico ao qual se referiu Freud em O Mal-estar na Cultura? Se não sabe, vale a pena passar na próxima banca de jornal e adquirir o livreto a um preço inacreditavelmente baixo comparado à experiência que proporciona para o pensamento. É neste livro que está uma das passagens mais lindas escritas pelo psicanalista austríaco.

Freud cita o termo que se tornou famoso quando relata uma conversa que manteve com um amigo, o escritor Romain Rolland. “Sentimento oceânico” é então a  expressão do amigo, não dele. Ela está relacionada à “genuína fonte da religiosidade” que Freud, como ateu, nunca havia apreciado: “Não consigo descobrir esse sentimento oceânico em mim mesmo.”

O que isso tem a ver com Os Arrais? Se não tudo, muito. Sabe quem já viu os rapazes. Ou quem prestou atenção nas suas músicas.

Os-Arrais-Fausto
Foto: Lucas Motta.

Dois irmãos. Tiago Arrais e André Arrais. Eles formam uma dupla brasileira de indie folk cuja inspiração artística é religiosa. Talentosos rapazes que veem em Deus a razão de tudo e a religião como um, sim, sistema cultural, mas nesse caso não imposto como uma farsa, ou adotada como ilusão, subterfúgio, máscara narcísica ou qualquer coisa do tipo. Ver e ouvir Os Arrais deixa isso muito claro. Há neles o tal sentimento oceânico. Interessante, até, é que o sobrenome “Arrais” significa “pequena embarcação” e os irmãos usam constantemente imagens de barco e oceano.

Entretanto, não escrevo sobre música. Escrevo sobre outra singularidade de Os Arrais. Alguns diriam ser a segunda faceta do trabalho da dupla, embora eu pense, com muita segurança, que é grosseiro erro. Trata-se da primeira faceta. A música que apresentam é a forma onde guardam o verdadeiro tesouro: o conteúdo. Tem que ouvir Mais e As Paisagens Conhecidas.

A proposta artística de Os Arrais possui um elemento talvez pouco conhecido, ao qual damos o nome de “numinoso”. Aquilo que é numinoso é o que não pode ser compreendido de modo racional, mas somente quando é “experenciado”. O conceito é do teólogo protestante alemão Rudolf Otto, séculos XIX e XX. Talvez, por isso, só será possível compreender a proposta dos irmãos quem experimentá-la e com espírito contemplativo que, sim, quer dizer desconectar-se de tudo: desde os aparelhos eletrônicos aos interesses cotidianos.

A arte é uma fonte infinita de experiências numinosas. Assim como a religião, evidentemente. Separadas, proporcionam sensações capazes de mudar a estrutura tanto psíquica como de valores de uma pessoa. Juntas, são capazes de abrir um caminho de mudança real no ser.

Essa é a proposta que Tiago Arrais tão sabiamente delimitou: não mais – ou não apenas – uma experiência estética, mas sim ética – o que jamais pressupõe ser uma experiência destituída de beleza, o que é sempre bom deixar claro. A diferença, grosso modo, é saber abrir mão da superficialidade para viver algo maior.

O sentimento oceânico não é composto de rompantes emocionais repletos de uivos de “glória” e “aleluia” que não ressignificam o tempo todo quem somos. Não, não tem nada a ver com isso. Saber mais, sentir mais, experimentar mais – se conhecer mais. A experiência que Os Arrais propõem é mais elevada. Vai além de meras músicas organizadas em um álbum precificado.

Fausto negociou com o diabo para se sentir preenchido, para achar a resposta, para suprimir a vaidade de poder dizer – e viver – como quem sabe quem se é e para quê veio ao mundo. “Só a cruz esconderá quem você não é”, diz uma das letras. Os Arrais apresentam uma experiência artística, literária e musical, que propõe uma luz. Ou pelo menos uma luz menos angustiante para se chegar ao que faz sentido.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.