Martha Meola e Helena Ranaldi se enlaçam na distribuição cruel das memórias de mãe e filha. O que é de quem, de quem é a culpa? Esse é o manjar amargo de Por Trás das Flores.
O espetáculo, com direção de Marcelo Lazzaratto e texto de Samir Yazbek, em algum lugar entre o Líbano e o Brasil, une essas duas mulheres para um acerto de contas de significados, de destinos mal selados e, como não poderia ser diferente, de grandes roubos.
A personagem de Ranaldi carrega o olhar melancólico e longínquo de quem teve como desafio a problemática da manipulação materna. Seu transe é tão agudo que induz memórias, sabe-se lá se verdadeiras. Não que o espetáculo não as deixe claro, mas é que me lembrei de minha própria escrita: “Lágrimas que choramos por pai e mãe são lágrimas de formação” — que selei com espinho em meu primeiro romance.
Na pele de Ranaldi, em sua beleza tristonha, a verdade doeu-me: não há morte capaz de enterrar as memórias dos laços feitos pelo destino.
As culturas libanesa e brasileira ficam em segundo plano na trama umbilical, e não é difícil perceber que a personagem de Helena se recusa a ser como a de Martha.
Martha é um assombro na interpretação! Faz da trivial história doméstica uma única abocanhada da subjetividade.
Suas vaidades — não menos dignas de empatia — nos fazem pensar na sensibilidade que, na medida em que envelhecemos, se apura. Quando a juventude se esvai, parece que se perde um pouco a graça da rebeldia. A mãe é, de igual modo, compreensível. Se a morte ainda rodeia — e no caso da filha é como uma prisão —, a solidão é irrecuperável.
A filha tenta ser uma mulher concreta, aquelas de raiz fixada à terra, e para ela o Líbano é esse lugar. Os teares que compõem o cenário corroboram.
O texto de Yazbek é inspirado em suas raízes libanesas. Seu intuito é mergulhar na psique dessas mulheres que levam em conta suas diferenças culturais, mas sabem que há algo de mais pungente entre elas: ser mulher num tempo que passa para a mulher.
Não há invulnerabilidades numa relação entre mãe e filha. O rio que corre é o mesmo no Líbano e no Brasil, com obstáculos de medo e larguras de esperança — para as sortudas.
A mim, que me fisgou o olhar de ruína de Ranaldi, daquela fonte inesgotável da orfandade — e escrevo “daquela” para manter distanciamento —, é interessante que revele uma propensão aos protocolos de vizinhança. É nessa lacuna que está o Líbano para a filha. As obrigações de trato com as “causas” são uma maneira de pertencer. Toda causa serve a um sujeito.
Memória também é um capital. Não esquecer é tão importante quanto esquecer, e como um peso do qual não podemos nos livrar, a opinião dos mortos acaba por selar o destino de quem está vivo.
Sabem mães e filhas. Em Por Todas as Flores elas não têm nome.
Porque, quem sabe, diz sobre todas nós.
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