A trajetória de vida — e geográfica — de nosso convidado o moldou de maneira singular. Natural de Goiânia, Renato Livera percorreu caminhos que o levaram inevitavelmente ao encontro da arte, de sua própria identidade. O ator nos fala com admirável clareza sobre angústia, fama, autenticidade, mercado, e como tudo isso está relacionado ao seu processo criativo, que o capacita tanto à sensibilidade de um Roberto Bolaño quanto à baixeza de um delegado Laureano, sucesso de Guerreiros do Sol. Com exclusividade para a FAUSTO, Livera se revela com formidável repertório, além de sua grandiosidade como artista e — tentativa — de ser humano.
FAUSTO – Você é um artista angustiado?
Renato Livera: Qual artista não é angustiado? De certa forma, quando penso em angústia, penso em inquietação. A angústia não deixa de ser um tipo de sentimento que nos move. Claro que a angústia de um artista é diferente da angústia de um contador, de um bancário, pois para cada atividade que o ser humano exerce, a angústia se manifesta de uma forma diferente.
Como ela se manifesta em você?
Como trabalho com arte desde os 16 anos, entendo a angústia como um sentimento de movimento fundamental. Acaba sendo um privilégio poder transformá-la em criação. Embora envolva dor e ansiedade, são essas sensações que impulsionam o artista. Elas revelam uma não-aceitação de uma vida padronizada, algo que se alinha diretamente ao processo de criação do espetáculo Deserto, por exemplo. A angústia que senti ao mergulhar no universo do Bolaño, de decorar aqueles textos, de estar 100% presente para ativar meu corpo através da literatura dele, essa angústia me fez navegar por lugares novos. De certa forma, isso trouxe uma riqueza muito maior para o meu processo criativo. Não só para esse trabalho, mas para a minha vida.
Estamos falando de certa vulnerabilidade…
Esse estado de vulnerabilidade foi muito marcante para mim. E sim, sou um artista angustiado nesse sentido, porque não me satisfaço com o básico. Não basta entender um texto e interpretá-lo bem, ou usar os mesmos recursos que uso há anos. A angústia vem de um lugar que pergunta: “O que eu posso fazer para me salvar desse abismo que estou encarando?”. A angústia está muito distante da segurança.
Bom ponto…
Quando você está seguro demais, corre um grande risco: o de não se vulnerabilizar, de não deixar o seu corpo ser atravessado pelas instâncias do mistério, do medo, da novidade, da poesia, das sensações que o mundo oferece. É nesse lugar que me reconheço. Claro, é preciso tomar cuidado, pois não se trata de romantizar ou se deixar atravessar de forma leviana. Engraçado você me perguntar isso, porque, esses dias, na terapia, falei acerca disso. Porque estou passando por um momento de muita angústia.
Por quais razões?
Vivemos um tempo de excesso — de informação, imagens, demandas. O capitalismo selvagem nos torna escravos, seja na profissão, seja na comparação constante com o outro. Isso gera uma angústia que, para muitos, só pode ser tratada com remédios, com terapias agressivas. Aqui, volto ao que eu disse: o artista, de certa forma, tem o privilégio de poder olhar para a angústia e convidá-la a andar junto, sem ser dominado por ela, sem cair num abismo sem fim. Acredito que nossas sombras, como você disse [em off], também são matéria-prima para a criação.
Além de Deserto, essa angústia é de igual modo perceptível?
Em Colônia, espetáculo que estreei em 2017, essa angústia surgiu ao ler O Holocausto Brasileiro. A brutalidade da história do manicômio em Barbacena me paralisou. Não saber como lidar com aquela informação me moveu a criar. Foi essa angústia que guiou o caminho da encenação.
O que em você se conecta com Bolãno?
Durante muito tempo em minha vida não dei espaço para a vulnerabilidade. E, pensando aqui, junto com você, elaborando nessa “terapia-entrevista”, percebo que uma pessoa que sai do interior do Brasil — sou de Goiânia, e passei minha infância e adolescência entre Goiânia e Pirenópolis — já parte de um lugar em que o acesso à cultura, à arte, é bem diferente do que acontece no Rio de Janeiro ou São Paulo. Como acontece em boa parte do Brasil, talvez com peso maior no Centro-Oeste, região mais ligada ao agro, à vida sertaneja — inclusive vivi essa experiência sertaneja, tenho uma paixão enorme pelo rural —, quando descobri o teatro, fui invadido por uma sensação de que eu precisava batalhar muito para conquistar um espaço, para ser aceito. Quando cheguei ao Rio, essa sensação ficou ainda mais forte. Na minha mente, eu não podia titubear. Eu precisava estar sempre pronto, atento, preparado — o que deixou meu corpo muito afiado.
Construiu boas parcerias de trabalho?
Trabalhei com a Ana Kfouri, uma diretora que amo profundamente e que faz um trabalho rigoroso com o corpo, com a cena. Também sou muito apaixonado pela dança. Inclusive, quase participei de um espetáculo com o Henrique Rodovalho, da Quasar. Tudo isso foi me moldando com uma ideia de que o ator tinha que estar 100% pronto. Eu não podia errar. Eu achava que precisava acertar tudo. Sempre. Conforme fui amadurecendo, fui percebendo que o erro é um espaço precioso para o acerto. Comecei a mudar minha referência sobre o que é estar “preparado”.
E é aí que entra o Bolãno?
A angústia que atravessei me mostrou que, na verdade, eu não estava preparado, e que isso era essencial. Eu precisava abrir a musculatura, distensionar o corpo, deixar espaço para acessar os lugares da poesia dele. Isso só se tornou possível quando permiti que meu corpo se vulnerabilizasse. Inclusive, voltei a escrever poesia, algo que eu não fazia há muito tempo.
É praticamente impossível separar nossa forma de trabalhar da nossa trajetória, não é mesmo? Sinto isso na minha rotina de romancista…
Toda essa carga de sair do interior, chegar numa capital como o Rio, ou mesmo São Paulo, e sentir a necessidade de mostrar que estou pronto, que pertenço, que posso estar nesse lugar, tudo isso foi se diluindo quando passei a compreender a vulnerabilidade como força. Tem uma parte na peça em que digo que a vulnerabilidade é o centro de tudo. Realmente acredito nisso. Por Bolãno ter vivido dez anos com uma doença grave, e transformar isso em pulsão criativa, percebi como a fragilidade pode potencializar os nossos sentidos de maneira surpreendente.
Como foi passar por tudo isso durante a concepção da peça?
Houve muitos dias em que cheguei em casa desesperado, sem saber para onde ir. Cada ensaio era um encontro com um Bolaño diferente: o das poesias, das entrevistas, das palestras, das cartas, dos ensaios, das crônicas. Tudo estava muito misturado, sem uma linha cronológica. Deserto é isso: um espaço intertextual aberto, fluido, cheio de camadas. Foi através da vulnerabilidade que compreendi Bolaño — pela condição dele, mas também pelo que ele representa como homem latino-americano, dentro de um contexto político, social e cultural muito próprio. O corpo dele, como o nosso, é atravessado por uma guerra silenciosa, uma guerrilha do capital, uma luta desigual e extremamente violenta. Acredito que nós, latino-americanos, estamos sempre resistindo. Nosso corpo vulnerável não é sinal de fraqueza, mas de outra busca. É muito difícil lidar com essa cegueira coletiva, que faz com que tantas pessoas escolham viver num mundo asséptico, guiado só pela lógica do capital, do acúmulo, da hierarquia. Tudo isso massacra os nossos ideais. É difícil gritar quando há tantas armas apontadas para você. É difícil ter voz num sistema de valores tão invertido.
Essa é a conexão…
Sim, a necessidade de gritar algo que vem de dentro, de um corpo marcado por uma geografia, por uma geopolítica. É penoso, sim, lidar com o lugar de onde vim. Hoje, claro, aceito e acolho muito mais minha história, minha cultura goiana. Trabalhei isso em terapia: “Qual é a imagem que vemos nos filmes, nas novelas, na mídia? Você vê um goiano com sotaque sendo o CEO de uma empresa? Um personagem nordestino ou do Centro-Oeste ocupando esses espaços de poder, de sucesso?” Quase nunca. Isso é violento. Temos que nos enquadrar num modelo que não nos contempla. Ao mesmo tempo, quando entendemos o poder da vulnerabilidade — como o Bolaño entendeu nos últimos anos de vida —, nos reconectamos com a nossa própria identidade. Sinto que vivo essa guerrilha interna todos os dias. De cravar o pé, assumir minha história, acreditar nela. Mesmo sabendo que é preciso negociar — porque sim, a vida é cheia de acordos. Esses acordos, no entanto, hoje faço comigo mesmo. Bolãno foi um escritor profundamente enraizado nas dores e contradições do seu tempo e da sua origem. E é isso que me conecta com ele.
Escrever é uma forma de reescrever ou apenas um modo de não se deixar enganar? Um artifício?
Essa pergunta é cabeluda, mas é uma boa provocação. Pensando em Bolaño, do que entendi, do que me atravessou, acredito que escrever era, para ele, um artifício. Vejo na escrita do Bolaño um instrumento de resistência — e, mais ainda, de reexistência. Uma forma de continuar vivo dentro da literatura, mesmo diante da fragilidade. Pelo que conheci dele nas entrevistas, nas leituras, nas cartas, ele era uma pessoa muito reservada, com um humor peculiar. E essa reserva, essa reclusão, parece ter feito com que ele passasse boa parte da vida escrevendo a própria vida, criando seus mundos. A escrita, para ele, me pareceu ser isso: uma maneira de criar um mundo possível, no qual ele pudesse existir. E, talvez, por estar distante da sua realidade — política, geográfica, do Chile, da América Latina —, escrever era quase como um aparelho respiratório, cujo oxigênio o mantinha vivo. Sem isso, talvez ele não resistisse.
E para você?
Escrever é reescrever. Estamos sempre reescrevendo. Existir já é reescrever algo que foi escrito antes de nós. Estamos sobre camadas. Estou em cima da minha ancestralidade, que está sobre outra, e outra. A escrita, nesse sentido, é uma continuação dessa linha. É o ato de ressignificar. Reescrever é inventar novas formas de viver. É dar sentido ao presente a partir do passado — criando um futuro possível. Reescrever é uma forma de não repetir mecanicamente o que veio antes, de não cair no automatismo das narrativas dominantes. É abrir espaço para o inusitado.
Você escreve?
Recentemente, comecei a escrever um livro que parte da minha própria história — mais especificamente de um prédio onde morei em Goiânia. E é curioso você trazer essa pergunta, porque percebo agora que esse livro é justamente isto: uma tentativa de reinventar esse universo que eu vivi, ou que eu gostaria de ter vivido de outras maneiras possíveis. Não é uma autobiografia. É uma autoficção, uma reinvenção, uma fabulação sobre algo que é, ao mesmo tempo, real e recriado.
E tem um valor político…
Sim, porque reescrever a história — com consciência do que foi vivido — é uma forma de escapar do conservadorismo, de um pensamento engessado, que gera violência quando tenta impedir a mudança. O fascismo se alimenta disso: do medo de mudar, da recusa em inventar novos mundos possíveis. O neoliberalismo extremo também se nutre dessa limitação — dessa lógica que sufoca a imaginação e mata o diferente. Reescrever também é resistir politicamente. É nosso serviço, enquanto pessoas, reinventar para não repetir. A escrita, nesse sentido, é um risco. É sempre arriscado se colocar no mundo com palavras. Até os 16 anos, eu não gostava de estudar, não gostava de ler. Eu tinha até pânico da escola. Todavia, quando tive contato com a literatura, com o teatro, com a dramaturgia, algo se abriu. Um portal, talvez. E eu nunca mais voltei. Porque aquele mundo — o anterior — só me trazia angústia. E não era a angústia criativa, produtiva a respeito da qual estamos falando. Era uma angústia corrosiva, estéril. A escrita me salvou.
Você foi aceito pela turma do teatro?
Isso me atravessa profundamente. O teatro, por si só, já é uma busca por pertencimento. Na adolescência, eu me sentia deslocado — como se não pertencesse a lugar nenhum, mas tentasse me encaixar em todos. Foi no grupo de teatro do colégio que encontrei pessoas como eu, e isso foi libertador. Aos 17, entrei no Martim Cererê, com direção do Marcos Fayad, que havia trabalhado com Zé Celso e Ítala Nandi — um salto imenso na minha formação. Aos 18, estreei uma peça que me levou a viajar muito, inclusive para Portugal, e foi quando conheci o Rio. Esse período amadureceu meu olhar artístico. Ainda em Goiânia, comecei a perceber algo que me incomodava: as rixas veladas entre os poucos grupos da cidade, sempre marcadas por competição. Eu queria mais: circular, crescer, expandir. Foi aí que pensei: “Preciso ir para São Paulo ou para o Rio.”
Deu certo em tão pouca idade?
Tentei entrar na EAD, pensei em fazer Oficina, mas acabei voltando para Goiânia. Só em 2001 fui, de fato, morar no Rio. E percebi que lá também existiam nichos. Grupos fechados, “patotinhas” — e nunca fui disso. Quando criei minha companhia, a Físico de Teatro, junto com minha ex-companheira Camila Gama, a ideia era justamente essa: não formar um grupo fechado, mas sim convidar diretores e artistas diferentes a cada trabalho. A troca com novas pessoas me interessava mais do que criar uma “família” cênica fixa. Claro, tive experiências lindas com grupos. Fiquei alguns anos com a Ana Kfouri, no Grupo Alice 118. Foi um processo belíssimo. Fizemos Palco Giratório em 2005, antes de eu fundar minha companhia. Ali, entendi o valor de um grupo, mas também entendi o risco: você acaba cristalizando uma linguagem, e se não há respiro, troca, aquilo pode virar vício. Quando a Ana seguiu com sua pesquisa pessoal e o grupo se dissolveu, percebi como é difícil sustentar uma companhia no Brasil — artística e financeiramente.
Sou bastante cética quanto a essa ideia de coletivo, de grupo, de união… Nunca vi funcionar, ou só fala que funciona quem é líder da patota, de alguma forma “reverenciado”…
Optei por um caminho mais independente, de circular, me infiltrar em diferentes espaços, colaborar. De certa forma, acho que fui aceito, sim, mas não por um grupo específico. Fui aceito por vários. Sempre busquei dialogar com diferentes artistas, linguagens, gerações. E acho que é assim que me sinto pertencente: sendo múltiplo, estando em movimento. Esse desejo de pertencer à “turma do teatro”, com o tempo, foi perdendo sentido para mim. Percebi que era uma armadilha. Corremos o risco de fazer teatro para a turma do teatro. Ficamos girando em círculos, falando para as mesmas pessoas, querendo agradar a bolha. Já vi colegas artistas saírem do teatro sem aplaudir, sem olhar no meu rosto. Isso me entristece. Porque é de uma pobreza imensa. O gosto é subjetivo, mas o respeito ao trabalho do outro é essencial. Eu, mesmo quando não gosto de uma peça, sempre faço questão de reconhecer a coragem e o esforço de quem está ali.
Como alguém que assiste bastante teatro, percebo isso…
Para mim, isso é uma falha, inclusive uma falha no projeto de formação de público. Acho muito mais potente quando o teatro rompe essa bolha. Lembro, por exemplo, do Festival do Cariri, no interior do Ceará. Fizemos uma peça lá meia-noite, num lugar improvável, e a fila dobrou o quarteirão. Não eram artistas, eram moradores da cidade, que esperavam o festival o ano todo. Isso forma público. E é isso que alimenta o teatro de verdade.
Qual é seu foco hoje?
Hoje, meu foco é criar obras que provoquem, que investiguem, mas que também sejam acessíveis, que possam tocar pessoas de diferentes formações. Como em Colônia, que não é uma peça para mil pessoas num teatro de entretenimento, mas que tem sua complexidade e que provoca, sim, públicos muito distintos. Volto à pergunta: me sinto pertencente? Sim, mas não no sentido de querer fazer parte de uma “turma”. Sinto-me pertencente ao fazer artístico, à troca verdadeira, ao risco criativo. O risco, para mim, é mais importante do que a aprovação. Conheci pessoas que nunca tinham ido ao teatro e foram assistir Deserto por acaso. Um casal que conheci numa feira de brechó, por exemplo. Fiz o convite e eles foram. E foi a primeira vez que foram ao teatro. Isso é mágico. Isso vale mais que mil análises acadêmicas sobre linguagem.
O artista é mais livre quando se forma a partir de suas catástrofes?
Olha, a catástrofe, de certa forma, imprime no corpo da pessoa uma geografia muito única. E essa geografia pode gerar liberdade — ou uma prisão. Depende do tipo de catástrofe, do que ela destrói e do que sobra. Uma coisa é certa: a catástrofe move. Ela desloca o terreno, interna e externamente. Tenho uma ligação muito forte com a agrofloresta, com o plantio. Lá em Pirenópolis, iniciei uma agrofloresta com a minha companheira Liza Eiras durante a pandemia, e agora ela vai completar cinco anos. Foi justamente naquele contexto de caos global, em meio a tanto medo e incerteza, que comecei a perceber como a catástrofe também pode produzir nutrientes. Ela modifica o solo. E modifica o olhar. Na agrofloresta, há um princípio muito bonito: quando uma floresta sofre um grande desastre — uma tempestade, um vendaval que derruba uma árvore centenária —, aquele espaço de destruição se torna também um clarão. Esse clarão permite que a luz chegue onde antes não chegava. Ele cria novas possibilidades de vida, novos ciclos, novas espécies surgem naquele vazio. Fazendo esse paralelo com a vida humana, com a trajetória do artista, eu diria que a catástrofe também pode abrir esse tipo de clareira. Ela nos convida a replantar, a reorganizar o território interno, a ressignificar experiências. Nesse sentido, sim, pode ser um caminho de liberdade — ou melhor, de expansão. Porque talvez não se trate apenas de “ser mais livre”, mas de ver mais longe, de perceber espaços que antes estavam encobertos. Voltando ao Cerrado, de onde eu vim, existe um fenômeno natural que me marca muito: as queimadas espontâneas, provocadas pelo calor e pela seca. Elas não são as queimadas criminosas, que devastam tudo. São queimas naturais, que fazem parte do ciclo do bioma. E, depois delas, a terra floresce de um jeito novo. Espécies brotam justamente por causa do fogo que passou. A destruição ali é, paradoxalmente, condição para o florescimento. Talvez o artista formado pela catástrofe não seja simplesmente mais livre, mas mais atento. Mais poroso. Mais capaz de perceber as potências que nascem nos escombros. A liberdade, nesse caso, vem da possibilidade de reconstruir com consciência. De olhar para as ruínas e enxergar um terreno fértil.
O que fazer quando a sensação que prevalece é a de esgotamento?
Resistir. Resistir porque é natural. Natural não só em cada processo criativo individual, mas ao longo de toda uma trajetória artística. Estou completando agora quase 30 anos de estrada. E é claro que, no começo, tudo era mais romântico. Não existia esgotamento. Existia uma vontade quase selvagem de fazer. Lembro-me de um processo com a Ana Kfouri que durou nove meses — todos os dias, sem texto, só presença. Eu tinha 23 anos e o corpo inteiro vibrava. Eu nem sabia o que era esgotamento. Mas aí o tempo passa, você amadurece, vai enfrentando os desafios de se fazer teatro num país como o nosso e o esgotamento chega. Ele chega pelo cansaço de seguir, pela precariedade, pela invisibilidade. Chega quando você vê amigos desistindo, perdendo a força. Chega quando você começa a se perguntar se vale a pena continuar. E, mesmo assim, você segue. Resiste. Talvez essa força venha da personalidade de cada um, da história de vida, das condições — financeiras, emocionais — que permitem seguir. Nem todos conseguem. E tudo isso pesa. O esgotamento, na verdade, vem de muitos lugares. Do financeiro — quando, mesmo com energia, você não consegue pagar suas contas. Do psicológico — que, às vezes, aparece até nos momentos em que tudo parece estar “dando certo”. Nessa hora, é preciso olhar para dentro, se perguntar o que, de fato, é essencial para você enquanto artista. Vale a pena atravessar esse esgotamento? Vale a pena por algo que é maior do que o cansaço?
Já passou por diferentes esgotamentos?
Sim, inclusive quando tudo estava bem. Não tenho uma carreira com salário fixo. Vivo de marés. E, por mais que eu tenha surfado uma boa onda, de repente estou ali de novo, remando contra a arrebentação. Essa metáfora do mar me atravessa porque eu surfo. Tem dias lindos, e mesmo assim você passa cinco horas no mar e surfa uma onda só. Às vezes, gastamos dias, semanas, anos por uma única onda boa. E se você não tiver paixão, se não acreditar profundamente no que faz, se não entender que a consciência artística é maior do que o prazer de uma onda, você desiste. Quando o esgotamento chega, é o momento de voltar à pergunta mais essencial: por que eu faço o que eu faço?
Qual é o lado tristíssimo da fama?
É uma pergunta intensa, acho que só quem tem alguma consciência do que é a fama de verdade consegue respondê-la. Porque, para quem está de fora, a fama parece estar sempre no campo da conquista, da vitória. A fama é vendida como algo que só traz coisas boas. Para quem está dentro, a coisa é bem diferente. Aí sim, dá para sentir o lado tristíssimo dessa história. Para mim, o lado mais triste da fama é quando ela se torna o centro da relação entre o artista e o público. Quando o artista começa a achar que é a fama que sustenta o seu ofício — e não o ofício em si. A fama pode ser sedutora. Ela dá visibilidade, reconhecimento, até público, mas ela também cobra. E cobra caro. A fama também pode aprisionar num único ponto da sua trajetória — aquele momento em que se tornou “famoso”. De repente, você passa a vida tentando repetir aquilo. A fama, na real, é uma ilusão. Uma ficção criada entre o público e o artista, baseada em expectativas. O público espera que você seja aquilo — aquele personagem, aquele momento, aquele sucesso. Se você não entende que isso é uma construção — e que é passageira —, você se perde. A fama não alimenta artisticamente. Ela apenas atesta, por um momento, que algo que você fez tocou muita gente. E só. Depois disso, a vida segue. Se você não souber seguir junto com ela — sem se agarrar à fama —, você corre o risco de parar de criar. Parar de arriscar. Parar de viver o ofício de forma viva. A fama, no fim, é só um certificado momentâneo. Tudo bem que ela venha. Que venha, até; mas é preciso saber deixá-la ir.
O que você chamaria de vulgaridade promovida e aplaudida no meio artístico?
Eu acho que existe um fetiche muito delicado no meio artístico. Aparece no teatro, na música, na dança — mas é especialmente visível no audiovisual. Às vezes você vai retratar uma realidade cruel, brutal, violenta; e, mesmo que a intenção seja criticar essa realidade, o resultado acaba promovendo exatamente o que se pretendia denunciar. Porque há ali um fetiche, uma estética que seduz. E isso dá visualizações, lucro, trend, top 1. É delicado. Porque, por mais que o discurso diga “estamos denunciando”, a prática muitas vezes exalta o que se diz criticar. E isso se torna um ciclo vicioso. Um ciclo onde esse tipo de produto — embalado com estética sofisticada ou linguagem de vanguarda — acaba sendo aplaudido, premiado, consumido em massa, sem que se perceba que ele está apenas reforçando o que deveria desconstruir. E o pior: isso se retroalimenta. Hoje, com todas as ferramentas de análise de público, de algoritmos, de estatísticas, o sistema entende o que o público quer consumir. O meio artístico, muitas vezes, se adapta a isso, produzindo mais do mesmo para atender a essa demanda voraz. Só que essa demanda nem sempre está interessada em refletir sobre o que consome. Ela quer engolir, se entreter, e passar para a próxima. Aí a arte corre o risco de virar um produto descartável, efêmero, sem profundidade. Isso é vulgar. Não no sentido moralista, de condenação, não é isso. No sentido de que há uma superficialidade vendida como crítica. Uma estética do “politicamente consciente” que, no fundo, só reproduz o que diz combater.
O que todos os dias você diz a você mesmo que não pode perder?
A fé. Pode parecer simples, até bobo, mas é isso: não posso perder a fé. Ser artista, ator, ser criador no Brasil é viver constantemente à margem, como se nossa profissão não fosse uma profissão de verdade. Parece que estamos sempre correndo atrás de uma oportunidade, nunca construindo algo de fato.
Quem quer o bem de verdade do artista?
Talvez só o animal de estimação do artista. Porque nem sempre a família quer o bem do artista. Nem outros artistas. Às vezes, nem o próprio artista quer o próprio bem. Talvez o dramaturgo queira, mas só enquanto o artista estiver servindo à sua obra. No fundo, o artista é um provocador, por natureza. E quem é que realmente quer o bem de alguém que abalaria estruturas? A verdade é que o artista não costuma ser benquisto. Ele incomoda, questiona, movimenta. E isso não interessa a quem quer estabilidade, status, controle. Então… quem quer o bem do artista? Não sei. Talvez ninguém. Talvez poucos. Ou talvez só quem precise verdadeiramente da arte para continuar respirando nesse mundo.