Padre Rodrigo Pires Vilela: “Religião não pode ser o anestésico da vida”

Religião: conceito que está acima da diversidade de religiões. Nenhuma é igual à outra, nem Deus o único na disputa da alma do homem moderno. Truncado e insuficiente, continua sendo – e mais do que nunca! – importante de ser compreendido na atualidade. Quando conflitos e atentados ainda são promovidos por sua égide, agora digital, qual é o papel do líder religioso? Religião no Contemporâneo é uma série de eventos realizada pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo, sob direção do filósofo Luiz Felipe Pondé, que vem discutindo o tema com um pastor, um padre, um sheikh, um pai de santo e um rabino. Exclusivo para a FAUSTO: Rodrigo Pires Vilela, o padre. Professor de latim medieval, teologia patrística e mariologia na Faculdade de Teologia da PUC-SP, é mestre em Patrologia pelo Instituto Patrístico de Roma e Teologia Sistemática pela PUC-SP, além de doutor em História da Ciência pela mesma instituição.

Religião
Entrevista com Padre Rodrigo Pires Vilela para a Série Religião no Contemporâneo.

FAUSTO – O que sua religião tem a oferecer?
Rodrigo Pires Vilela: Minha religião oferece sentido de vida. Na história do catolicismo, a ideia de salvação sempre esteve condicionada ao seu contexto histórico. Portanto, hoje, aquele que busca sentido de vida, encontra-o no catolicismo.

Se pensarmos na busca de respostas, em que aspecto o catolicismo é melhor do que a psicanálise, por exemplo?
Os dois campos oferecem respostas para necessidades diferentes. O campo da psicanálise é científico, já tem sua própria configuração. A religião não trabalha – e nem pode se meter a trabalhar – no mesmo universo. Os campos do espectro da ciência são muito bem definidos. Se uma religião tentar se meter, vai desgraçar a vida do fiel.

Creio nisso.
No universo religioso, a linguagem beira à poesia. O texto bíblico nunca se propôs a descrever exatamente, por exemplo, o evento da criação. Não é essa a função do texto. O texto não tenta mostrar como Deus fez o mundo, ele apresenta quem é o criador. É diferente. Por isso que não adianta usar a Bíblia para argumentos científicos. Isso beira à loucura. Desvirtua a função e o sentido do texto.

Qual é o lugar da Beleza nos ritos católicos?
Na liturgia. A liturgia é o centro da vida cristã. É quando a comunidade se reúne, não em torno da figura do padre, mas tendo o padre como representante daquela comunidade, que se apresenta diante da liturgia.

O que é a liturgia?
É o espaço de encontro entre Deus e o ser humano.

Como se dá esse encontro?
Na leitura dos textos que consideramos sagrados, em um primeiro momento; e na oração, em um segundo momento. No primeiro momento quem fala é Deus; no segundo, somos nós que falamos.

Qual é a importância da Beleza?
Na medida em que vamos fazendo parte dela, ela nos molda. Na medida em que vamos entendendo o sentido da liturgia, abrimos espaço para que ela nos molde. É uma estética que, como tem vida própria – ou seja, independe do padre, do povo – consegue nos moldar. Se for verdade uma máxima que aprendi certa vez, que o ser humano se torna aquilo que contempla, através da liturgia vamos nos tornando cada vez mais parecidos com Jesus de Nazaré.

Religião é também encantamento ou encantamento é uma cilada, uma abordagem contemporânea que tende a levar o religioso a uma visão ingênua do mundo?
Se o entendimento de religião for como algo que nos afasta do mundo, a religião acaba nos tornando alienados. Só que religião não pode ser alienante. Não é esse o seu papel. Seu papel é oferecer sentido a uma vida que não acontece na nuvem, mas quando temos cartão de crédito para pagar, problemas no trabalho, na família. Religião não pode ser o anestésico da vida. Porque – e voltamos ao ponto inicial – se temos problemas com os quais não conseguimos lidar, não será a religião que vai dar a solução. Religião é uma questão de estética, sim, que nos modifica a ponto de nos portarmos de modo ético, sim; agora, a partir disso acreditar que a religião possa blindar a vida de problemas? Não faz sentido. Um catolicismo que promete soluções é um catolicismo infantil. Esse processo de infantilização do fiel, embora exista, tem que ser tolhido.

Mas precisa haver encantamento! Ou não?
O encantamento não tira ninguém do mundo. Se posso fazer uma comparação, a beleza, esse fascínio que a religião desperta, não tira de ninguém a maturidade. É como quando estamos diante de alguém que amamos. Essa pessoa não nos torna bobos, infantilizados. É um fascínio por um momento a vir. Não sei se me faço claro…

Sim, faz. E faz muito sentido isso do fascínio do momento a vir… Bonito isso.
Se esse vislumbrar do universo tira a malícia que o mundo tem, a religião afeta negativamente.

Estamos vivendo outra vez conflitos de matiz religioso como muitos ao longo da História ou nunca deixamos de vivê-los?
Quando lemos Santo Agostinho, principalmente a obra Cidade de Deus, livro 19, vemos que não estamos voltando a viver nada, sempre vivemos. No meu entendimento, primeiro as pessoas optam por odiar.

Inclinação natural para o ódio?
Primeiro elas odeiam, depois é que buscam uma justificativa. Primeiro elas odeiam muçulmanos, depois é que encontram uma justificativa para esse ódio. Escutamos esses chavões por aí, que eles querem destruir o Ocidente, mas se lermos o Antigo Testamento encontraremos a mesma base de ódio.

Com certeza.
Encontramos discursos de ódio em todos os tipos de literatura, não apenas na bíblica ou corâmica. O que acontece é que não há mesmo motivo. E se esse ódio conforta, a pessoa encontra “a paz de Deus”. Ela se sente “o braço armado da justiça”. Agora, não acredito, sinceramente, que religião seja um caldeirão que favorece esse tipo de postura. É, na verdade, um triste cruzamento quando pessoas loucas encontram a religião. Ou quando pessoas loucas encontram a política. O problema é a loucura. Primeiro, sempre, a atitude fundamental é: eu odeio.

Existe solução para o louco?
Não sei. Na religião, não. Voltamos ao início de nossa conversa…

Missão da psicanálise.
Algo que aprendi sendo padre é que há problemas que não são da minha competência. E eu não tenho vergonha de assumir isso. Respondo assim mesmo para algumas pessoas que me procuram. Daí eu as encaminho para especialistas diversos. Já ouviu a história bíblica dos dois irmãos que procuram Jesus para reclamar da partilha de uma herança?

Talvez…
Jesus respondeu: “Quem me estabeleceu como juiz de vocês?” Para algumas pessoas, ele tirou o corpo fora, mas não foi isso. Portanto, a religião não tem base para lidar com loucos. Como um processo estético, místico ou uma vida de oração pode curar a loucura? O louco precisa de um profissional.

Então a violência não é intrínseca à religião?
A violência é intrínseca ao homem. Se for verdade que o ser humano é como o Rei Midas, que tudo aquilo que toca vira ouro, tudo aquilo que toca uma pessoa perturbada entra em desordem. Por isso é que eu não acredito que a sociedade estraga o ser humano, nesse sentido.

E como fica o “vem como estás”?
Religião tem a ver com busca. Ela não pode perder esse aspecto para angariar massa. No movimento de Cristo, o verbo é “oferecer”, não “pedir”. Se uma pessoa está em busca, tenho que ter, como líder espiritual, a clareza do caminho que vou indicar. E esse caminho ao qual me refiro não é o transcendental. Se uma pessoa está em busca, parto do pressuposto de que ela está disposta a mudar. Do contrário, igreja cheia a qual preço?

O que pensa da ideia de aulas de religião em escolas não confessionais?
É assunto muito delicado. Porque a linha é muito tênue. Uma coisa é tratar religião como objeto de estudo, outra trabalhar de modo proselitista.

E essa separação, mesmo na Ciência da Religião, pode não ser tão clara, na prática…
Não. [Dá risada]

[Dá risada] Menos ainda, na verdade, porque existe o verniz do ateísmo metodológico, caso o cientista da religião não for muito preparado.
Clareza? Não trabalhamos com esse produto.

[Dá risada]
Olha, não é claro para mim como funcionaria isso, sinceramente.

A pergunta está muito aberta. Vou mudá-la. Estudar religião é importante? Porque, talvez, diminuiriam os preconceitos e até a violência por intolerância religiosa. E, neste caso, a Ciência da Religião seria uma boa solução. Porque não é confessional.
Sim, nessa perspectiva, sim. Mesmo teólogos poderiam lecionar, porque depois de um curso de quatro anos de teologia, o nível de proselitismo cai muito.

O nível de ateísmo é muito alto entre os teólogos. [Dá risada] Piada pondeísta…
E isso é bom, de certa forma. São quatro anos de curso, convive-se com outras realidades. Com um pouco mais de estudo, a pessoa perde o fundamentalismo. O proselitismo é próprio de pessoas fundamentalistas. É o “apóstolo do bem”. Ele acredita que existe um universo conspirando contra. Quando alguém faz esse curso como ciência, acaba o problema. Teólogos e cientistas da religião seriam aptos, sim, mas a forma como estou vendo a coisa tramitar não me parece caminhar para isso. Não está sendo exigida uma boa formação.

Crimes hediondos de clérigos mundo afora, como a pedofilia, têm afastado pessoas do catolicismo?
No caso da pedofilia notamos que o estrago é somente no lugar onde houve o crime. O afastamento de fieis é naquela paróquia. É geográfico. Na minha paróquia não sinto diminuição, pelo contrário, está aumentando o número de fieis. E não vejo, inclusive, cautela por parte dos pais, por exemplo, orientando seus filhos para que fiquem longe do padre. Na comunidade católica, a percepção é de que esse problema é local. A chaga fica sob o lugar e sob o padre. Uma vez afastado e punido pela justiça civil, em pouco tempo a comunidade volta a ter um convívio sadio. Creio que em outras religiões aconteça da mesma forma.

Não deixa de ser magnífico isso, não? A vida se reordena e a religião não perde a força…
Crimes hediondos devem ser punidos. E devem ser punidos o mais rápido possível, porque é a única forma que a igreja tem de mostrar que ainda é uma instituição séria. A igreja precisa fazer uma escolha: ou opta pela estrutura ou pelo Evangelho. É como o Papa Francisco fala: o Evangelho é o nosso norte.

 

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.