Sherianne Kramer: “O custo emocional de ser abusado por uma mulher é muito mais pesado”

Mulheres que cometem abuso sexual. Não, você não leu errado. Do costumeiro lugar de vítima ao de abusadora, há um abismo de dificuldade na aceitação do tema. Sim, delicadíssimo pela própria natureza e também porque diz sobre conceitos ainda intocados. A ousadia em inseri-lo no debate é de Sherianne Kramer, cientista social e professora do Amsterdam University College e pesquisadora da University of the Witwatersrand. Enquanto desenvolvia sua tese de doutorado como pesquisadora na Wits, foi a campo investigar garotos vítimas sexuais de mulheres e descobriu o número assombroso de criminosas, seus métodos e justificativas. Exclusivo para a FAUSTO.

FAUSTO – O número de meninos vítimas de abuso sexual por parte de mulheres adultas é alto! Mulher que molesta criança existe mais do que podemos imaginar?
Sherianne Kramer: As mulheres foram ignoradas nas primeiras pesquisas sobre abuso sexual. Na década de 1960, estávamos apenas começando a reconhecer que o abuso sexual infantil ocorria, de modo que levou pelo menos mais duas ou três décadas até que as pesquisas reconhecessem que quase 50% das crianças vítimas de abuso sexual eram garotos.

Altíssima a porcentagem!
E ainda assim, apenas nos primeiros anos do milênio consideramos que parte desse abuso estava sendo causado por mulheres. Claro, é muito contextual. Em primeiro lugar, a invisibilidade das abusadoras era obviamente em função das construções de gênero que implicam a impossibilidade, ou pelo menos a improbabilidade, da agressão feminina – especialmente agressão sexual. À medida que as construções de gênero começaram a se deteriorar, particularmente nos contextos do hemisfério norte, as mulheres se tornaram menos caracterizadas por traços femininos, digamos, “típicos”, associados à maternidade e à educação. Por sua vez, isso abriu um espaço discursivo para reconstruir as mulheres de várias maneiras – seja como sexualmente liberada, economicamente independente e até potencialmente como uma criminosa agressiva.

Uau!
No entanto, como eu disse, a violência é totalmente contextual. E um segundo ponto é que um caso de abuso sexual depende muito da forma como a violência é definida numa cultura em seus períodos específicos.

Por exemplo?
Por exemplo, em sociedades pacíficas, o assédio sexual pode ser considerado dentro dos limites de uma definição de abuso sexual. No entanto, em sociedades caracterizadas por uma cultura de violência, como a África do Sul, onde conduzi boa parte da minha pesquisa, um caso tem que ser realmente brutal para ser compreendido como “abuso sexual”. Ou seja, enquanto as mulheres podem estar se envolvendo com crianças em comportamentos sexuais socialmente inadequados, elas podem também não ser percebidas como abusadoras onde a violência é normativa.

As consequências psicológicas em meninos abusados por mulheres adultas são parecidas com as de meninas abusadas por homens adultos?
Certamente existem semelhanças – as vítimas com as quais trabalhei expressaram sentimentos de vergonha, culpa, perda de memória e flashbacks, que são todos efeitos psicológicos “típicos” no rescaldo de um caso de abuso sexual. No entanto, parece que o custo emocional de ser abusado por uma mulher é muito mais pesado do que no caso de abusadores do sexo masculino. Tanto vítimas femininas quanto masculinas de crimes sexuais cometidos por mulheres expressaram que é muito mais difícil divulgar esse tipo de abuso, porque as oportunidades de denúncias são limitadas pela fiscalização e pelos sistemas legais que muitas vezes não levam esses crimes a sério.

Imagino que sim.
A “insondabilidade” desses crimes faz com que as vítimas permaneçam em silêncio e, por sua vez, essas vítimas sentem que nunca têm a oportunidade de “lidar” com suas experiências. Para meninos – e homens – o silêncio também é uma função da vergonha de ter sido abusado sexualmente por uma mulher porque isso não apenas contradiz a aparente natureza das mulheres como supostamente gentis e carinhosas, mas também contradiz a natureza construída de homens e meninos como forte, viril e no controle de seus destinos sexuais.

É muito mais complicado entender esse tipo de abuso, principalmente porque ele envolve, em algum sentido, a excitação do pênis. Que complexo!
É realmente complexo. Nos casos de violência sexual cometidas por homens, o pênis é compreendido como uma arma fálica que funciona apenas para danificar ou destruir. O pênis tem uma construção bem diferente nos casos de vítimas masculinas de violência sexual cometida por mulheres. Quase todas as vítimas masculinas com quem trabalhei falaram sobre a traição corporal. Todos eles explicaram, de alguma forma, que suas abusadoras tiveram que excitá-los para que o abuso sexual pudesse se manifestar. Essas excitação pode ter sido por Viagra, carícias excessiva ou estimulação oral, mas em todos os casos o resultado é o mesmo – o até então perigoso pênis é agora ressignificado como um pênis traidor que paradoxalmente muda o corpo masculino de forte e agressivo para fraco e indefeso. A traição é então reforçada nos casos em que a excitação de uma vítima do sexo masculino é usada no tribunal como prova de seu consentimento, o que raramente ocorre com vítimas do sexo feminino, apesar de seus corpos também ficarem excitados durante um evento de abuso sexual.

Há casos de crianças que tomam Viagra sem saber para depois serem abusadas?
Não encontrei nenhum desses casos. Penso que nos casos em que as vítimas do sexo masculino são crianças, isso é improvável porque, embora o gênero do autor possa ser inconsistente com nossas construções de violência sexual, o padrão de violência de adulto para criança é familiar e plausível, dada a dinâmica de poder inerente deste relacionamento. No entanto, me deparei com casos de homens adultos sendo sexualmente violados por mulheres depois de forçados a tomar Viagra. Nestes casos, o Viagra permite a interrupção da aparente impossibilidade de uma mulher adulta abusadora e uma vítima do sexo masculino adulto.

Fatores culturais influenciam de que maneira na “cura” dos traumas? Livros, filmes, documentários, comunidades…
Muitas das vítimas masculinas que eu já vi expressaram que participar de grupos de apoio a vítimas do sexo masculino – tanto em grupos presenciais como online – tem sido uma enorme fonte de ajuda. Isto é provável porque, nesses ambientes, a negação desses casos, tão característica dos sistemas de saúde mental, médico e legal, seja ausente e, assim, as experiências desses homens acabam sendo validadas. No entanto, muitos livros e filmes tendem a ter o efeito oposto. Nesses casos, as abusadoras são altamente sexualizadas, e a vítima do sexo masculino é geralmente construída não apenas como parte que consente, mas também como parte que deseja. Isso contrasta completamente com a experiência de vítimas masculinas de violência sexual cometida por mulheres e, portanto, serve apenas para reificar construções sociais que ou apresentam a abusadora como a “melhor educadora sexual” ou como uma “prostituta”.

A mídia tem um papel a desempenhar no combate a esse tipo de violência?
A mídia certamente tem um papel, mas é complexo. Em muitos casos, tenho testemunhado relatos da mídia que minam a natureza desses crimes sexuais ao continuar confiando nas construções de gênero. Por exemplo, em um caso recente na África do Sul, a mídia tratou Cezanne Visser, uma defensora acusada de múltiplos crimes sexuais, como vítima de seu parceiro, Dirk Prinsloo. A mídia enfatizou continuamente sua vitimização, assim como seus atributos sexuais, enquanto construíam Prinsloo como um “monstro”. Isso apesar das evidências de que Visser era o ator principal nas violações sexuais das crianças vítimas de abuso. No entanto, dito isto, também tem havido recentemente muitos relatos da mídia que focalizam a reconceituação das normas de gênero para que possamos começar a imaginar uma mulher que poderia violar sexualmente e um homem que poderia ser sexualmente violado. Esses tipos de produção de mídia são fundamentais para mudar a consciência do público sobre a natureza desses crimes.

Tocar nesse assunto pode parecer um gesto de abuso contra a mulher, no sentido de correr o risco de demonizá-la outra vez?
Certamente. Na verdade, é uma crítica que tenho enfrentado muitas vezes neste trabalho que faço. No entanto, abordar esta questão não deve ser entendido de forma tão binária – a virada para um foco em vítimas do sexo masculino e abusadoras do sexo feminino não prejudica, e não deve prejudicar, o fato de que muitas mulheres continuam a ser violadas em vários aspectos políticos, econômicos, sexuais e psicológicos. Em vez disso, a virada para a vitimização masculina e abuso feminino deve nos permitir uma compreensão mais holística da violência e da diversidade que a caracteriza. Na África do Sul, a maioria das vítimas de homicídio são homens jovens, mas continuamos a focar campanhas em vítimas femininas e infantis. Ao priorizar as vítimas masculinas na pesquisa, podemos adicioná-las à lista de possíveis vítimas no léxico do abuso sexual. No entanto, isso não remove as mulheres dessa lista, nem contradiz o fato de que as mulheres ainda enfrentam grandes quantidades de forças opressivas em suas vidas diárias.

Mulheres que abusam sexualmente normalmente foram abusadas quando criança?
Algumas das mulheres encarceradas que entrevistei foram abusadas quando crianças. Essas mulheres tendiam a usar essa narrativa como uma muleta, uma vez que proporcionava poder explicativo para as violações sexuais. Da mesma forma, muitas das vítimas com as quais trabalhei supuseram que suas perpetradoras foram abusadas quando crianças, mais uma vez fornecendo alguma justificativa racional para a existência da improvável predadora sexual. No entanto, é importante notar que, em muitos casos de violência cometida por homens, esses homens são tratados como “monstros” que simplesmente não conseguem controlar seus impulsos masculinos inatos. As abusadoras são, no entanto, tratadas como vítimas, o que, por sua vez, recoloca a abusadora como vítima. Essa “lógica” – junto com outras que constroem a abusadora como doente mental, viciada em narcóticos ou como cúmplice do homem – só serve para enfraquecer sua capacidade de ser tão violenta quanto seus colegas homens.

No Brasil, um dos mais importantes líderes espirituais foi descoberto como um cruel abusador de mulheres, crianças e adultas. Mulheres abusadoras também se escondem atrás da religião?
O discurso religioso foi central em muitas das entrevistas que realizei com criminosas sexuais encarceradas. Muitas dessas mulheres alegaram que o “diabo me fez fazer isso” ou que esse era o “plano de Deus”. Essa confiança no discurso religioso dá a essas mulheres uma narrativa justificatória que enfraquece sua culpabilidade criminal e reforça sua “bondade” feminina, de tal forma que, mais uma vez, o perpetrador sexual feminino é visto como improvável.

Os pais devem alertar seus filhos de jeitos diferentes quando é menino e menina?
Creio que isso apenas reforçaria as normas de gênero que tornaram tão difícil para nós conceber a ideia de uma abusadora mulher, de antemão. Creio que é muito mais importante para os pais alertarem seus filhos da mesma maneira, independentemente do sexo de seus filhos. Da mesma forma, os pais devem se concentrar na questão do abuso sexual, e não no gênero do agressor. A violência sexual “sem gênero”, deve ser vista de tal forma que as próximas gerações não vejam o abusador sexual como sendo restrito aos homens e à vitimização como sendo restrita a mulheres e crianças.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.