Sílvia Pérez Cruz. Esse é o nome da catalã de voz nada óbvia. O álbum para ouvir de pronto é Domus. Faça isso em um dia de nebulosidade interior. Funciona como prólogo de oração que sai na marra.
Uma das vozes mais interessantes de nosso tempo, Sílvia Pérez Cruz é um privilégio. Se folk, se flamenco, tanto faz, o que importa é sua entrega e intensidade. Intensidade!
Quando grita é como uma despedida daquelas que levam de nós o que ninguém mais tem. Canta em catalão, espanhol, português e galego. Com nossa língua flerta o tempo todo e graciosamente, como se pudesse ainda mais.

Nascida em Palafrugell, em 15 de fevereiro de 1983, é filha de pais músicos. Não tenha certeza se alma assim se ensina ou se aprende; ou se fatalmente é por causa do tal gene. Seus pais são Càstor Pérez Diz e Glòria Cruz i Torrellas.
Numa família de liberdade – sorte! – é mais fácil ser autêntica. Assim foi com Sílvia, que teve mãe e pai que a trataram ainda em tenra idade como adulta e nunca negaram a ela o direito de se exercer como queria.
Formada em canto-jazz pela Escola Superior de Música da Catalunha, Domus, de 2016, é resultado de sua participação no filme Cerca de tu casa, de Eduard Cortés. Sílvia compôs toda a trilha sonora.
Entretanto, não é só esse álbum que merece a entrega do ouvinte possuído. Vestida de Nit, por favor, álbum de 2017. Loca é belíssima!
Aos de fragilidades mil – mim e tu, sabe-se lá – Sílvia Pérez Cruz reorganiza tudo o que está de vísceras para o ar. Ela mesma já disse que a música é uma forma de limpeza e não tem medo da exposição de suas feridas. A arte tem mesmo isso de tirar a pessoalidade e tornar universal.
E o que ela diz é sensualíssimo! “Até porque há muitas formas de se contar algo íntimo sem que se entenda. Posso ter toda essa intimidade num simples ‘ah’.” Pode tudo, mulher!
Há, sim, vozes salva-vidas, como os barcos.
Quantas e quantas vezes Scott Matthews me salvou?
Sobre ele ainda um dia escreverei, quando eu puder dar conta do que sei que não sou capaz ainda. Quem vive das palavras é prudente quando tem medo delas. Canções nos tornam, nos desmembram e nos refazem. A música é como uma escuta clínica daquilo que ainda não foi dito. São palavras dos outros, mas são nossas.
Tem razão o luso jornalista Gonçalo Frota quando escreve que toda canção que canta Sílvia Pérez Cruz se torna a mais emocionante do mundo. Quem já se cansou de escutar Chorando se foi ou Hallelujah? Ouça Pérez.
Bom jeito de encerrar a jornada por sua obra é En La Imaginación, de 2016, o mais jazzístico. O menos triste.
Sílvia Pérez Cruz é sensível, livre, profunda, triste, selvagem; é sensual e, não ignoro a tradição, associo a melancolia de sua música à genialidade de sua música.
“Por que todo ser de exceção é melancólico?” pergunta Aristóteles.
Dedico a Leonardo Gonçalves, quem me apresentou Sílvia.
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