Em A Última Entrevista de Marília Gabriela não há alteridade, mas encurralamento.
No palco, Marília Gabriela vive ela mesma; Theodoro Cochrane, seu filho, também. Quis que soasse dúbio mesmo.
Se somos quem somos, vivemos em retrospectiva.
A maternidade é uma força telúrica, se sabe; mas o que não se assume é que ela conjuga no fatalismo da continuidade. Pais e filhos conhecem seus papéis sem jamais os aprender.
O espetáculo não é bem uma entrevista, nem bem um espetáculo; ou, talvez, eu o tenha compreendido em minha experiência de filha como uma hora sombria daquilo que foi, ou é, uma vivência real da maternidade.
O filho dá início à peça tecendo galanteios à mãe, no cenário típico de fundo preto e mesa desprovida de ornamentos, porque Marília sempre se bastou. O único charme eram seus óculos que revezavam em modelos variados em ressonância com a alma do convidado.
No anúncio entusiástico de todo apresentador, Theodoro chama por…
Eu não ri.
Talvez, pelo prenúncio da temática recorrente, a da invalidação. Rude, provinciana, universal.
Ao longo da montagem, Marília e Theodoro revezam os papéis, uma ideia que teria sido brilhantíssima se de fato tivesse havido uma entrevista. Seria a hora de Theodoro dizer, em alto e bom som, em seu melhor tom de deboche, o que a mãe nunca ousou dizer por brio, gentileza ou por ser, como todos sabem, aquela que se recusa a sentir medo.
Hora de uma catarse verdadeira num estúdio fictício, porém real, porque a televisão nunca foi real, mas mesmo fictícia fez de Marília Gabriela um mito de evocação real. Sabe toda mulher que desejou ser ela, fortaleza; e, talvez, Theodoro, que desejou o mesmo ou desejou que ninguém assim a tivesse desejado.
No entanto, a peça caminha por outra via, a de uma entrevista que não acontece, porque os vãos que há no coração de mãe e filho não permitem.
Possivelmente, essa foi a intenção de Michelle Ferreira, que assina a dramaturgia: dar ao espectador a sensação de ter errado de canal e diante de um drama da vida real, do qual não podemos dar licença aos envolvidos, assistimos a desforra das privações, das comparações e das canseiras dos anos. A direção da peça fica por conta de Bruno Guida, com assistência de Mayara Constantino.
Assim, somos obrigados a ficar e prendemos a respiração pelo constrangimento. Não da montagem, evidentemente. Refiro-me ao constrangimento dessa vida real cujo glamour escapa até das semideusas.
Somos tão pueris diante da televisão. Tela feiticeira, estelionatária, pois nos rouba pela ingenuidade.
Uma última entrevista nunca se realizaria na forma como Theodoro e Marília interagem, porque quando os laços são simbióticos, eles se retroalimentam em questão de segundos, paixão e repulsa são condimentos ácidos.
“Lágrimas que choramos por pai e mãe são lágrimas de formação. Elas nunca cessam.”
Escrevi essa sentença em meu primeiro romance quando compreendi que os acúmulos desse esquema umbilical servem para a arte.
Marília e Theodoro carregam o texto para lá e para cá, como um ato de cansaço do que não desejam mais representar. Contudo, em algum momento, notei um amor tão profundo dela por ele. Tão profundo que não ousei mais julgar o que eu ouvia. Tudo é contingência.
No palco, Marília Gabriela prova mais uma vez ser mito: se permite ser vista com memória falha. Ela, insígnia do absolutismo.
Ela é do Brasil, familiar. Por isso adoramos tudo nela: sua roupa, perfeição assinada por Theodoro; seus cabelos, sua elegância orgulhosa, sua voz reconhecível pelo espírito conterrâneo, porque esmiuçou personalidades como se buscasse prova de que vale a pena ser brasileiro.
Tudo o que faz de nós pessoas importantes tem vãos, sabe Marília.
Tudo o que pensamos fazer de nós pessoas pouco importantes tem vãos, deve saber Theodoro.
No amalgamado de sentimentos que gera o confronto em A Última Entrevista de Marília Gabriela, flagramos equívocos e falsos problemas, o significado de se relacionar: perder tempo no contíguo privilégio de apenas habitar um ao outro.
O que nunca entendemos, em qualquer tipo de laço, é que é o tempo que não tem alteridade. É ele que encurrala.
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